terça-feira, junho 06, 2006

O Que é Ser Romântico

Para a maioria das pessoas, a palavra “romântico” tem a ver com comportamentos afectuosos e gestos de delicadeza que expressam o afecto que uma pessoa sente por outra. Neste ponto de vista, o “romântismo” apresenta-se como uma “estética da lamechice”. Um homem que goste de oferecer flores, de ouvir música melosa, que aprecie poemas líricos, será facilmente considerado romântico.
O meu ponto de vista distancia-se totalmente desta imagem e, como tal, irei aqui tecer algumas considerações.

O romantismo é, em primeiro lugar, um estilo de pensamento que surgiu várias vezes ao longo da história. A fase mais conhecida é a que emergiu no final do século XVIII e que ganhou grande notoriedade ao longo do século XIX.

Neste período, houve um número de pensadores que reagiram à primazia que era dada à Razão. A transformação cultural que o Iluminismo operou no pensamento dominante das sociedades ocidentais veio dar uma importância desmedida aos critérios de objectividade, de observação distanciada e de raciocínio lógico. As emoções, a imaginação e tudo o que apresentava uma natureza ambígua eram rejeitados pelo racionalismo iluminista. É contra a este prisma frio e geométrico que nasce o pensamento romântico, daí que também seja chamado contra-iluminismo.
O romantismo está presente na filosofia, na literatura, na música e nas artes visuais. Tem aparecido sob muitas formas e deu origem às mais diversas escolas. No entanto há algo de essencial, há uma matriz sem a qual nenhum movimento se pode chamar “romântico”. Qualquer romântico está especialmente interessado na esfera das emoções e na fantasia. Isto porque a única coisa que realmente interessa é o Homem na sua originalidade e diversidade, na sua capacidade de surpreender e de causar deslumbramento. O espírito humano é, sem sombra de dúvida, a arena onde os românticos desenrolam os seus combates. Tentar compreender as características do espírito recorrendo a análises frias, “cientifistas”, procurando a exactidão matemática, é uma tarefa que tem tanto de vã como de enfadonha. A alma humana é de tal forma complexa que não pode ser compreendida pela razão. Além disso, explicá-la racionalmente é matar o seu deslumbramento.
Um conceito muito importante para compreender o romantismo é o de catarse. A catarse é uma espécie de purga emocional. Foi um termo definido por Aristóteles para descrever estados de grande tensão através dos quais a alma “despeja” as emoções para o exterior, produzindo uma sensação de alívio. Se o leitor assistiu ao filme Titanic, quando este estreou no cinema há já alguns anos, terá provavelmente presenciado alguns momentos catárticos. O filme deu a milhares de adolescentes a oportunidade de viver um grande drama, de mergulhar nas emoções das vítimas e de chorar profundamente. Eu confesso que nunca vi tanta gente chorar numa sala de cinema como quando fui assistir ao Titanic. Os românticos gostam da catarse e de a provocar nos outros. Os Miseráveis de Victor Hugo, a Fur Elise de Beethoven ou os quadros do sublime têm em comum o facto de provocarem emoções fortes, e daí, a catarse.
A noção de genuinidade está quase sempre presente no coração romântico. Estes pensadores apreciam o que está em estado bruto, ou seja, o que não foi pervertido e que reflecte uma natureza primordial. Muitas vezes apontam o dedo acusador à “sociedade” que reprime e perverte a inocência natural da espécie. Sociedade, civilização e religião são conjuntos de normas que espartilham a liberdade humana. A liberdade criativa e de expressão das emoções é o bem mais valioso que existe. A submissão às regras morais e às leis é o mais violento atentado feito à criança dentro de nós.
Há pessoas que se surpreendem quando me ouvem dizer que o satanismo literário é uma corrente do romantismo. Claro que Lúcifer nada tem a ver com as lamechices vulgarmente atribuídas ao espírito romântico. No entanto, Lúcifer é uma metáfora da natureza humana e Deus é um símbolo das normas sociais, da ordem e da repressão. O Príncipe das Trevas é um ser que cede aos impulsos carnais, que procura o excesso e a transgressão. É uma personalidade genuína, ou seja, que não vive sob a hipocrisia civilizacional nem se deixou “domesticar” pela moral castradora da sociedade. Lúcifer é uma personagem que “encaixa” perfeitamente no ideal romântico.
Um outro aspecto desta corrente é o problema das origens. Nos séculos XVIII e XIX houve, por parte de muitos teóricos, uma grande preocupação com a genealogia da sua sociedade e das instituições que lhe subjazem. Existem trabalhos sobre a origem da família, do casamento, da propriedade privada, da proibição do incesto, etc. A maioria espelha uma visão evolutiva da cultura, uma espécie de teoria evolucionista de Darwin aplicada às sociedades. Algumas dessas análises descrevem um processo de degradação. Isto é, à medida que a sociedade ocidental foi ficando mais complexa (mais “civilizada”) os indivíduos foram perdendo a inocência e passaram a basear as suas vidas em morais hipócritas e castradoras. Nunca houve um consenso acerca da verdadeira origem nem sobre o processo de degradação. No entanto, os românticos andaram sempre à procura de seres humanos genuínos no presente. Ora, se a sociedade ocidental era encarada como um mal por excelência e a origem de toda a falsidade e corrupção, quem nela não estivesse integrado seria de certeza bom e genuíno. Os povos de outras culturas (que não eram vistos como civilizados) seriam, portanto, constituídos por indivíduos inocentes e verdadeiros. Como exemplo cito a obra de Jean-Jacques Rosseau sobre o “bom selvagem”. Não eram apenas os outros povos que tinham indivíduos “em estado primitivo”. Os ocidentais que não estavam integrados na sociedade eram muitas vezes vistos como primitivos. Os “loucos”, os deficientes rejeitados, os criminosos e outros marginais reflectiam a genuinidade humana e simultaneamente eram as maiores vítimas da maldade civilizacional.
O romântico é uma espécie de alquimista, sempre à procura de uma essência no seio da condição humana. Pretende algo de absoluto que o faça levitar e que o leve para um reino de emoção e fantasia em estado puro, longe da podridão das normas sociais.

O que o leitor talvez não saiba é que o romantismo é um fenómeno cíclico nas sociedades ocidentais. A primeira aparição deste fenómeno deu-se com a emergência da escola cínica na Grécia. Defendia que o Homem devia existir em si próprio e para si próprio, aparte da sociedade. Para estes filósofos, a sociedade era um aglomerado de convenções e de artificialidades. Mais tarde, a palavra cínico tornou-se epíteto de quem despreza as normas, instituições e os outros seres humanos. Há quem afirme que um verdadeiro romântico tem que ser necessariamente um cínico. Eu concordo em parte com esta afirmação. Uma vez que um romântico está constantemente à procura de uma essência conformada por um ideal de genuinidade, as desilusões são frequentes. Daí que acabe mais tarde ou mais cedo por encarar a humanidade como um rebanho de ignorantes e corrompidos.
O último aspecto do carácter romântico que irei descrever neste artigo é a apetência pelo obscuro. Como já foi dito, existe um grande interesse pelo espírito humano no romantismo. Acontece que, para muitos, este espírito reside escondido por detrás da fachada que todos apresentamos durante as relações sociais. Se o ser humano fosse um iceberg, seria a parte submersa que interessaria aos românticos. Tudo o que está oculto estimula a imaginação e tende a provocar emoções mais intensas. O romântico quer ser uma criança que olha para um quarto escuro, treme de medo e dá largas à fantasia.
Finalizo este texto da mesma forma que o iniciei: negando a imagem comum do romântico como um ser “muito bonzinho” dado a comportamentos lamechas e líricos. Romântico é alguém que valoriza as emoções acima de tudo e que sente uma necessidade profunda de genuinidade. Desafio o leitor a explorar algumas correntes associadas ao romantismo: o surrealismo, o simbolismo, o nacionalismo, o gótico, o satanismo e o expressionismo. Também vale a pena comparar a teoria do inconsciente de Freud e a psicanálise em geral aos pressupostos fundamentais do romantismo.

Alguns escritores românticos:

- Victor Hugo

- Marquês de Sade

- Alexandre Dumas

- William Blake

- Mary Shelley

- Lord Byron

Alguns compositores românticos

- Ludwig van Beethoven

- Richard Wagner

- Franz Schubert

- Johannes Brahms

- Tchaikovsky

- Sergei Rachmaninoff

segunda-feira, junho 05, 2006

A Fotografia e o Paradigma Visual da Modernidade

Na sociedade ocidental, tem-se vindo a encarar o sentido da visão como um acesso imediato ao mundo externo. Além disso, a habilidade visual misturou-se com as capacidades cognitivas. Por um lado, a visão é o sentido privilegiado e é tomada em conta como algo autónomo, livre e puro. Por outro, os símbolos visuais são experimentados como mundanos e necessariamente incorporados, e a sua interpretação é vista como ulteriormente contingente.

A forma como reflectimos acerca dos nossos próprios pensamentos na cultura ocidental é conduzida por um paradigma visual. Olhar, ver e conhecer tornaram-se acções interligadas. Então, o conceito de ideia, tal como o entendemos, está profundamente ligado às questões da ‘aparência’, da representação visual e da imagem. Os problemas que levanta o acto de produzir teoria sobre a visão, tendo esta como uma prática social, começam quando investigamos a génese do nosso pensamento no seio da cultura moderna ocidental. O projecto da filosofia moderna contribuiu claramente para a nossa actual condição de confusão relativamente à visão – o estabelecimento do ponto de vista comum de que as representações mentais são essencialmente reflexos de uma realidade exterior (Jenks :1995 : 1 , 2).

Qualquer tecnologia envolve o estabelecimento de uma relação particular com o mundo. Como tal, a fotografia constituiu-se sob a forma de um mecanismo de emoldurar, que, longe de ser uma mera técnica performativa, constitui uma parte essencial da definição da própria performance. A utilidade da metáfora da moldura, no que diz respeito à reflexão acerca da câmara – a tecnologia ubíqua que literalmente emoldura o mundo – é de grande importância. Tal como cada pintura veio a funcionar como uma ‘janela’ aberta a um mundo cenográfico, a moldura assegurou esta visão, demarcando a cena dos seus arredores. As molduras exerceram uma função organizadora que formalizou a centralidade do olho do espectador. Nem totalmente dentro, nem totalmente fora, a moldura é, paradoxalmente, tão essencial e constituinte como externa em relação à imagem. Esta liminaridade tem sido bastante acentuada pela câmara. A proliferação de imagens que se seguiu à industrialização da fotografia disturbou fatalmente a ideia de imparcialidade da moldura : à medida que cada acto de enquadramento começou a ser cada vez mais arbitrário, um espectro de contingência ameaçou a coerência de imagens que anteriormente tinha procurado um ponto de apoio na cuidadosa deliberação da sua composição. No entanto, foram as imagens em movimento que romperam definitivamente com a estabilidade da moldura, quando se tornou num ecrã atravessado por uma multiplicidade de aparências transientes e rápidos desaparecimentos (McQuire : 1998: 4 - 68).

Muitas teorias da modernidade foram informadas pela metáfora da câmara, ligada às possibilidades de visão ‘fora do corpo’ que providencia, às distâncias espácio-temporais que expande e às reivindicações de objectividade que autoriza. A capacidade de testemunhar as coisas de fora de todos os limites anteriores de espaço e de tempo ilumina o facto da câmara não só nos oferecer um meio de representar a experiência mas também de transformar a natureza da experiência e redefinir os nossos processos de entendimento (McQuire : 1998 : 1 , 2).

Devido ao facto da fotografia assumir a fidelidade da representação (ou a ideia de realismo, de algo que não é representado mas sim re-presentado), os primeiros contactos com o público habituado ao desenho, à pintura e à gravura, geraram reacções como se de magia se tratasse. Reconhecia-se que a fotografia excedia os paradigmas estabelecidos da representação. Uma nova era estava a nascer, graças à objectividade que a técnica fotográfica oferecia. O potencial valor da câmara fotográfica no que diz respeito à sua aplicação científica nunca foi questionado. A valorização da visão objectiva consistia em algo mais do que uma estratégia estética. Tomou também a forma de uma questão moral : a câmara era um meio ‘honesto’ e ‘fiel’, só com muito esforço podia mentir, ao contrário das manipulações perpetradas pelos pintores e desenhadores. “A câmara está para a representação como o parlamento está para a democracia representativa : a idealização da imparcialidade”.

Se existe um poder único que a câmara possuiu terá a ver com a intimidade entre imagem e referente, uma crença na existência do fenómeno fotografado. Se foi fotografado é porque estava lá!.

A divisão entre ‘essência’ e ‘aparência’ que foi durante muito tempo perene na filosofia encontrou reflexo na estética, na fractura entre o realismo ‘expressionista’ e o realismo ‘directo’. O facto destas duas partes reclamarem autoridade em relação à ‘realidade’ – dependendo do realismo ser concebido como uma reconstrução das aparências que penetra a ‘simples superfície’ das coisas, ou como uma fidelidade absoluta às aparências que revela verdades essenciais – é menos um sinal de confusão do que um espaço conflitual da sua emergência. A situação da câmara neste terreno é instrutiva. Apesar da fotografia ser mais rapidamente associada ao realismo ‘directo’, de forma a distingui-la da pintura e do desenho, uma divisão semelhante entre fotografia ‘artística’ e ‘documental’ tem estruturado o seu próprio domínio. O espaço conceptual marcado pela separação do domínio das imagens do da realidade determina a prática de representação como a expressão do real. Esta divisão definiu a economia de representação do século XIX que constitui o contexto inicial da câmara fotográfica (McQuire : 1998 : 16).

Se a câmara fotográfica parecia milagrosa no século XIX, se as suas imagens conseguiram saturar a consciência e o senso comum como um meio sem rival de manufacturar semelhanças com a vida, esta asserção foi alicerçada pela dominação que a perspectiva geométrica conseguiu na representação visual. O sistema ‘quattrocento’, que envolvia a colocação de objectos tridimensionais sobre uma superfície plana de forma a que a pintura afectasse o olho do observador de forma similar aos próprios objectos, consistia num protótipo crucial para um novo estilo de subjectividade : o sujeito representado como um observador distante. Foi esta matriz de identidade, baseada na separação da interioridade do observador da exterioridade do mundo-objecto, que a câmara intersectou e começou a transformar nos meados do século XIX. Uma fórmula poderosa para a estandardização visual : uma visão matemática que podia ser continuamente projectada no ‘real’ num contexto social que apontava a matemática como a medida universal do conhecimento. O sistema quattrocento construiu um novo espaço de representação : um espaço cenográfico que permitia aos artistas transcrever as aparências reais fazendo figurar elementos como a profundidade, a proporção, a textura e a densidade de forma a ‘colocar’ os objectos em cena para o olho do espectador. Literalmente, um espaço para colocar coisas em perspectiva. A utilização paródica da anamorfose, que se desenvolveu paralelamente à perspectiva geométrica, partiu do modelo quattrocento de pintura como ‘espelho da natureza’(McQuire : 1998 : 18 - 23).

O evento fundamental da era moderna é a conquista do mundo como perspectiva, determinando uma nova relação entre representação e subjectividade. Essencialmente, a perspectiva é uma forma de abstracção. Simplifica a relação entre o olho, o cérebro e o objecto. È um ponto de vista ideal, imaginado como percepcionado por um olho único, ausente de movimento, uma pessoa claramente desligada do assunto que percepciona. Transforma o espectador num deus, que se torna a pessoa para quem o mundo inteiro converge, The Unmoved Onlooker.

A perspectiva geométrica criou um espaço representacional simultaneamente estético e analítico, um espaço organizado em torno da cada vez maior fissura entre o mundo exterior e a interioridade psíquica própria do olho da mente. Um aspecto crucial desta mudança foi a emergência da arte e da ciência como actividades seculares – cada vez mais independentes da religião. O desvanecimento da qualidade sagrada da arte através do culto secular do belo também transformou o observador implícito no trabalho, desembaraçando-se do olho omnipresente de Deus e estabelecendo o da razão. Isto introduziu um problema estético diferente – o da referência entre os domínios divorciados da arte e da vida – e abriu o duelo entre a ‘mimesis’ e a ‘realidade’ que constituiu a matriz da estética até ao nosso século.

A câmara foi inventada e estabeleceu-se numa altura em que o positivismo dominava. Durante o momento histórico em que o positivismo subjugou virtualmente a totalidade do conhecimento ocidental, a câmara fotográfica conseguiu fundir o realismo da perspectiva geométrica e o investimento teológico na luz como a origem da verdade com a valorização científica do olho objectivo ( McQuire : 1998 : 21 - 33; Jenks : 1995 : 8).

O termo ‘invenção da mente’ encapsula a maneira como a demanda cartesiana da verdade e de novas fundações é colocada como o problema de relacionar o mundo externo com a interioridade de uma mente pura e livre de todos os vestígios de emoção, sensualidade e corporalidade. O que o texto cartesiano formaliza é o novo senso de clausura relativamente ao eu. Para Descartes é a natureza exterior e impessoal do mundo que permite ser conhecido objectivamente. É graças ao facto do mundo se ter distinguido da mente que pode ser submetido aos princípios da matemática e da geometria, que providenciarão a matriz dominante do conhecimento científico e da representação visual. As questões metafísicas acerca das características ‘reais’ da natureza ‘exterior’ e da mente ‘interior’ eram naturalizadas e o projecto da filosofia dedicou-se à descoberta ‘rigorosa’ e ‘científica’ do modo mais preciso e apropriado de transportar o ‘exterior’ para o ‘interior’. O meio por excelência deste transporte tem sido os sentidos, principalmente a visão. Estas teorias empíricas do conhecimento marcaram a época da modernidade : um período que podemos descrever como a ‘abertura da visão’. Este cenário histórico estabeleceu uma dicotomia na relação entre o ‘eu’ e a alteridade, dois momentos concebidos como ‘o receptáculo’ e ‘o espectáculo’. Este cenário forjou a emergência de um empirismo ‘sem-mente’ e de um positivismo ‘sem-valor’ como estratégias metodológicas que viriam a dominar a moderna teoria social (Jenks : 1995 :.3).

O cientista social aderiu ao ponto de vista clássico da ciência que se baseava em três princípios :

1. Uma visão mecanicista do universo como uma totalidade interrelacionada ;

2. Uma aceitação de que existia uma ordem intrínseca inerente aos fenómenos como formas externas ; e

3. A contingência necessária, sendo que a razão procedia através da ‘independência’ da visão de um observador (Jenks : 1995 : 4).

A doutrina do progresso técnico que visa atingir uma ‘cópia essencial’ propõe que, num extremo utópico, a imagem transcenderá as limitações impostas pela história e reproduzirá numa forma perfeita a realidade do mundo natural. A história é a condição da qual procura escapar. Contra esta utopia, a sociologia do conhecimento argumenta que tal evasão é impossível, já que a realidade experimentada pelos seres humanos é sempre historicamente produzida : não há uma ‘realidade’ transcendente e naturalmente conferida.

O positivismo, na sua variedade de formas, é uma atitude em relação ao conhecimento. Não investiga as dimensões psicológica, histórica e política do deste – todas essas preocupações são suplantadas pela ‘pura percepção’, que é o cânone fundamental do ‘empirismo’. O positivismo é legitimado pela ideologia da ‘pura percepção’. A fé pré-moderna na divindade foi substituída pela crença da modernidade na precisão da óptica humana. Este novo realismo distancia-se da textura das relações sociais quando, na sua demanda técnica e clínica de metodologia científica, abandona todos os juízos de valor. Existe uma visão que se vislumbra a si mesma como pura e que exibe a sua ‘amoralidade’ e a sua ‘anti-estética’ (Jenks : 1995 : 6 , 7). Neste universo, o homem tornou-se o centro relacional do que é (do que existe em si) : um domínio sobre um mundo natural através do qual todos os objectos podem ser comparados e relacionados uns com os outros como um único sistema homogéneo. A colocação do homem como centro de representação estabeleceu uma relação firme entre sujeito conhecedor e mundo conhecido, mantida no lugar através da distância estruturada da observação fria que permitiu que um dominasse o outro. Foi deste solo fértil e receptivo que a semente da câmara fotográfica brotou no século XIX.

A câmara obscura (precursora da câmara fotográfica) nos séculos XVII e XVIII era um aparato que garantia acesso a uma verdade objectiva do mundo, para cientistas e artistas, empiristas e racionalistas. Se parte do método de Descartes implicava necessariamente a evasão às contingências da mera visão humana, a câmara obscura era compatível com esta exigência : encontrar o conhecimento através de uma visão puramente objectiva. A abertura da câmara correspondia a um ponto matemático possível de definir e a partir do qual o mundo podia ser logicamente deduzido e re-presentado. Encontrada nas leis da natureza, i.e., na óptica geométrica, a câmara providenciou uma vantagem infalível : a evidência sensorial. A câmara obscura está ligada a uma metafísica da interioridade. É uma figura para o observador que é um indivíduo livre e soberano e, além disso, um sujeito isolado e enclausurado num espaço quase doméstico separado do mundo exterior público. Definia um observador sujeito a um conjunto de posições e divisões inflexíveis. O mundo visual podia ser apropriado por um sujeito autónomo mas apenas como uma consciência privada e unitária desconectada de qualquer relação activa com o exterior. A câmara obscura constituiu um impulso final no processo de normalização do novo arranjo espacial. É uma máquina desenhada de forma que, durante o seu ‘normal’ funcionamento, reproduza a perspectiva geométrica da pintura do quattrocento. Em primeiro lugar, ofereceu um sistema prático de fabrico de imagens de acordo com princípios matemáticos. Mas, mais do que tudo, a câmara obscura providenciou uma arquitectura social distinta, estabelecendo um modelo funcional de relações entre sujeito e objecto no qual a interioridade do sujeito observador podia ser mantida à parte da exterioridade do mundo-objecto. Esta divisão era baseada numa reorganização do conhecimento que culminava na emergência da ciência moderna (Crary : 1988 : 32 , 33 ; McQuire : 20 , 24).

A única força de evidência da fotografia dependia na crença que, pela primeira vez, a representação tinha alcançado paridade relativamente à percepção directa. A relação única entre objecto e imagem escavou os dois caminhos paralelos que a credibilidade da fotografia trilhou. Um é o senso de independência de qualquer operador humano que o processo fotográfico reclama. O outro trajecto tem a ver com a importância da intersecção da câmara com o privilégio que a luz e a visão têm gozado como metáforas da verdadeira compreensão. Visão cristalina, clareza, iluminação, têm se oposto às trevas da dúvida, cegueira e obscurantismo com uma consistência que é frequentemente conferida como se da própria natureza se tratasse. A sedução da fotografia nunca consistiu puramente na geometria ou na semelhança visual. A fotografia foi buscar muito da sua autoridade ao facto de trabalhar com energia solar.

A verdade foi sempre pensada de acordo com uma idealização de puro pensamento. Para se conformar à sua própria doutrina, a verdade tem que ser algo para além da representação, sem ligações ao estilo, forma, mediação, suporte técnico ou material de qualquer tipo. Para assumir valor absoluto e incondicional, a verdade só pode pertencer ao reino da ideia pura, o sentido ideal, o conceito não adulterado que flutua para além da linguagem, para além de qualquer contexto de tempo, espaço ou cultura. Segundo Derrida (1976 : 11 In McQuire : 1998), não é a linguagem em geral, mas sim a linguagem oral que tem beneficiado de uma aura de transparência, permitindo a pura expressão de pensamento de que a ideia de verdade depende. Este privilégio da fala, decisivo na ordenação de uma certa hierarquia de verdade e representação durante bastante tempo, ajuda a situar a aceitação da verdade fotográfica. Da perspectiva que casa a voz com o puro pensamento, qualquer forma de escrita é necessariamente derivante, uma representação de segunda ordem, o signo de um signo. No entanto, no seu início, a fotografia evitou bastante este estigma, e foi aclamada como visão sem mediação, um meio no qual o significante se apaga a si mesmo perante a força do significado. (Se esta avaliação era mais forte no século XIX, facto é que ainda se mantém no presente. Quando olhamos para as fotografias tendemos a invisibilizar o signo, dando atenção ao referente). O que estava envolvido na subordinação histórica da linguagem escrita à oral é menos a condenação total da escrita do que a declaração de uma preferência por uma forma de escrita em relação a outra. Mesmo sendo a escrita em geral ocultada, a escrita natural – aquela discutida por Sócrates que constitui a inscrição da verdade na alma, a escrita que pertence a Deus e que produziu a ideia do livro da natureza – foi celebrada e renovada. É uma espécie de escrita natural, processada pela própria mão de Deus, que a fotografia reclamou como a sua proximidade à verdade na representação. Desta forma, a câmara entrou na consciência do século XIX, não simplesmente como um novo meio de representação, mas como uma nova linguagem da verdade, numa altura em que as reivindicações naturais da linguagem como veículo da verdade eram elas próprias testadas.

O que é distintivo do século XIX é a emergência de uma objectividade concebida não apenas como a imitação verídica da natureza, mas em termos do ideal de deixar a natureza falar por si. Esta transformação epistemológica, que intensificou o desejo por um novo meio de representação capaz de igualar o observador humano no alcance directo da natureza, foi vital para a sedução da câmara fotográfica. A forma como o processo fotográfico prometia a substituição do operador humano graças às leis universais da óptica e da química foi instrumental na emergência da objectividade mecânica como finalidade da ciência do século XIX. Se o positivismo formou o ambiente social da primeira leitura das imagens fotográficas, a câmara fotográfica auxiliou a moldar o positivismo à sua própria imagem.

À medida que a subjectividade era cada vez mais identificada como um atributo perigoso e poluente, a procura de objectividade mecânica assumia o status de um problema moral. A máquina era valorizada não apenas por poupar trabalho mas por parecer ultrapassar as capacidades do falível observador humano. O positivismo é, com efeito, uma proposição relativamente à natureza do mundo material : a proposta consiste na asserção de que, se uma coisa é visível, é um facto, e os factos contêm a verdade singular. A rejeição da ambiguidade e o fortalecimento da fissão entre arte e ciência correspondeu à negação sistemática da importância da subjectividade na vida social. Em nome da razão muito foi ocultado sob o rótulo de superstição, folclore, misticismo, primitivismo ou loucura, ou estigmatizado frequentemente como irracional ou emotivo – muitas vezes simplesmente ‘feminino’ – e desqualificado do conhecimento legítimo. Simultaneamente, como parte do mesmo processo, o positivismo procurou crescentemente lidar com as diferenças subjectivas inscrevendo-as em novas formações de conhecimento, distribuindo a variação social pela curva sinusoidal estatística e dividindo todos os fenómenos entre os pólos do normal e do patológico (McQuire : 1998 : 30 - 35).

O efeito imediato e dominante da fotografia foi o de confirmar a autoridade do olho objectivo através da cedência de uma visão mecânica capaz de transcender a suspeição relativamente ao ‘mero humano’. A câmara tornou-se uma metáfora privilegiada para a divisão hierárquica entre subjectividade e objectividade que o positivismo procurou entronar sob o título de realidade. Neste respeito, a valorização da objectividade fotográfica moveu-se a par da recente preocupação com a percepção incorporada. A fotografia tornou-se o padrão em relação ao qual as variações do corpo mortal podiam ser medidas. A aceitação que as imagens da câmara representavam uma ‘verdade absoluta’ para além da percepção humana foi fundamental para a reorganização positivista do conhecimento. Para muitos, a câmara parecia o mecanismo ideal para levar a cabo o sonho de Comte : a colecção de dados científicos providenciaria eventualmente conhecimento acerca da natureza e sociedade de tal forma que as obras de ambas poderiam ser planeadas tendo em vista a edificação de uma utopia tecnológica na Terra. A interpretação fotográfica é ainda dominada por um positivismo que assume que a ambiguidade é contingente e redutível – através de uma aplicação paciente dos protocolos adequados – a um núcleo de certezas. O positivismo tentou , durante o curso da história, definir e regular os ‘desvios’ sociais através da fotografia distribuindo significados fotográficos em duas linhas metodológicas : a da generalização, que converte a contingência fotográfica num esquema típico fazendo da fotografia um ‘exemplo’; e a da individualização que depende de uma ‘máquina’ de recuperar o exemplo particular a partir dos infinitos limites do arquivo.

No fulcro da nova ordem burguesa (sec.XIX) estava uma revolução nas relações sociais do tempo, o despoletar de um motor lógico / ideológico cuja força dinâmica daria uma nova forma a todos os aspectos da existência humana. A fé na iluminação conferida pelo progresso, uma herança do Iluminismo, cruzou-se com a revolução industrial para alterar as fundações do equilíbrio da história : pela primeira vez, a transformação e não a inércia era o esperado. A consolidação política do capitalismo dependeu em grande medida nesta reavaliação do valor da transformação. A inovação – o mais recente, o mais moderno – sofreu uma metamorfose para ser reconhecida como valor absoluto em si mesmo. Tal transformação rompe com a tradição, não apenas dando uma nova forma ao aparato da produção, mas também à lógica do consumo, incluindo as formas dominantes de cultura e de conhecimento. O progresso substituiu a tradição como terreno ideológico da modernidade, dando origem a uma matriz comum de legitimação por entre os estados-nação que, doutra forma, seriam considerados cultural e politicamente diversos.

Parte da complexidade de representar a grande mudança trazida pela modernidade tem a ver com o que pode ser denominado de ‘era do progresso’. Ao mesmo tempo depende e produz transformações dramáticas na experiência e na compreensão do tempo. Enquanto a percepção do tempo como um destruidor é muito antiga (sendo um exemplo o mito de Chronos), as formas e ritmos de destruição alteraram-se significativamente no período moderno. Enquanto a figura medieval mais comum para representar o tempo era um círculo (quer se referisse ao ciclo agrário ou ao movimento dos planetas em torno das esferas celestiais), a cultura industrial substituiu esta imagem por a de uma linha. A partir deste momento, tornou-se cada vez mais difícil conceber o tempo como um ciclo no qual o nascimento e a morte são aspectos complementares em vez de opostos. O tempo passou a ser unidirecional (McQuire : 1998 : 112 ,113).

O modelo da linha e a teleologia da linearização saturaram o conceito moderno de progresso, condicionando a crença para o desenvolvimento infinito das capacidades produtivas e das qualidades intelectuais, o curso da história como algo cumulativo, a ordem do tempo como sucessiva e irreversível. A consolidação do progresso como lei sócio-política ( paralela ao princípio de selecção natural de Darwin na biologia e precedida na física pela concepção newtoniana do tempo absoluto e irreversível) corresponde a um período de transformação social acelerada.

A emergência da velocidade como valor social principal, associada a noções de produtividade, eficiência e lucro, permitiu a reorganização instrumental do tempo para formar um sistema aparentemente auto-regulador : enquanto a tecnologia aumenta a velocidade social, as pessoas vêm-se a exigir novas tecnologias para se manterem ‘a par’.

O local chave na transformação histórica do tempo – o estabelecimento do tempo numa linha – foi o espaço de trabalho industrial. A mudança do campo para a cidade, que se constituiu na tendência demográfica dominante dos últimos dois séculos, fez com que o tempo passasse a ser uma questão social e política de forma diferente. Primeiro, o trabalho era medido menos de acordo com a duração de tarefas específicas e mais em termos de quantas horas um indivíduo trabalhava, o montante de pagamento por hora, a duração do dia de trabalho, e por aí fora. Segundo, o trabalho era menos susceptível a variações climatéricas directas, mas, por outro lado, estava sujeito às estações abstractas do mercado. Terceiro, a reconstrução das práticas de trabalho operadas pela produção mecânica significou a perda de controlo, por parte dos trabalhadores, do seu ritmo de trabalho. A maquinaria nova exigia respostas precisas no tempo : ritmos de trabalho constantes, uma distribuição laboral constante. Os princípios de ‘gestão científica’ de Taylor e a linha de produção fordista eram extensões ‘lógicas’ da necessidade de coordenar o corpo humano com a ordem do tempo da máquina.

Construir o tempo como uma medida abstracta envolve a supressão das diferenças temporais específicas em favor da equivalência geral de todos os períodos de tempo : um achatamento do tempo que Heidegger caracterizou como a quinta essência da experiência moderna da temporalidade.

As esperanças e a incerteza deste período reflectiram uma nova consciência do tempo : o desejo de deixar o passado para trás para criar o presente competiu com a sensação que o tempo passava muito depressa.

O senso de disjunção foi aprofundado pelo facto da nova ordem política estar ainda no processo de se auto-inventar. A demanda de mitos de origem para consolidar a hegemonia dos fabricantes e dos industriais em relação ao proletariado deu-se em consonância com os primeiros surgimentos da ‘cultura industrial’. Jornais de grande tiragem, novas experiências desportivas, novas formas de entretenimento e de fazer compras (apareceram os primeiros grandes estabelecimentos comerciais), e novos rituais de celebração nacional reformularam o terreno social e político. Muito do que nós actualmente tomamos como a essência da tradição (como a pompa da monarquia inglesa , e.g.) teve origem neste tempo. As ‘tradições inventadas’ começaram a ter uma importância decisiva em assegurar as vidas individuais às exigências do estado.

A nova consciência do tempo teve como reflexo uma profunda transformação na forma como o passado era recordado. As memórias colectivas dependiam em muito das práticas quotidianas. Durante o século XIX, o afastamento em relação ao tempo cíclico próprio do campo, com os ritmos sociais acelerados da cidade, corroeu os mecanismos tradicionais da reprodução social.

A transformação mais importante foi o declínio da importância da tradição oral. Durante o processo de ‘remoção da narrativa do reino do discurso oral’, o passado veio a significar um novo senso de remoto. Em contraste com a tradição oral, a cultura industrial do século XIX deu origem a máquinas de memória e a teorias que investigavam a história (McQuire : 1998 , 114 – 121).

A ‘descoberta’ da história e a colocação da transformação sem fim como a lei natural da existência marcaram o momento de tradução do conhecimento na economia temporal da cultura industrial. Este período testemunhou a ascensão dos grandes museus públicos. Enquanto instituição incumbida de coleccionar, catalogar e exibir o passado para que este seja visível, o museu desempenhou um papel muito importante na ideologia do progresso. A legitimidade do progresso reside na crença que o presente constitui o auge da história. A satisfação do presente consigo mesmo depende em parte da criação constante do novo sob a forma de ‘avanços’ intelectuais e tecnológicos. Mas, o presente tem que ser configurado como a última etapa. A fé no progresso exige que o presente seja capaz de reunir o passado no seu seio. Condicionada pelo rápido desaparecimento do passado, a modernidade desenvolveu tecnologias de memória, como o museu, a câmara fotográfica e o computador, encarregados de levar a cabo a tarefa de assegurar uma representação permanente (McQuire : 1998 , 74).

Apesar das melhores (ou piores) intenções, o investimento no ‘fragmento histórico’ extraído e recolocado no museu tendeu sempre a guilhotinar o passado, produzindo uma temporalidade disjuntiva na qual os povos ‘primitivos’ eram excluídos do presente. ‘Museificar’ as culturas indígenas providencia um meio eficaz de as transferir simbólica e politicamente do reino da vida para o da morte : negando-se-lhe a contemporaneidade, eles são convertidos num banquete totémico cujo consumo engendrou um senso de poder vital para a identidade do ocidente moderno. Os grandes museus incubam o sonho da ingestão daquelas culturas ‘arcaicas’ que não têm capacidade para acompanhar o presente, e de as preservar para a eternidade nos centros metropolitanos : Londres, Paris, Berlim, Nova Iorque.

É no contexto de uma crise de memória que o entusiasmo imediato suscitado pela câmara fotográfica pode ser compreendido. A fotografia era vista, muitas vezes de forma consciente, como uma tecnologia capaz de preencher uma lacuna emergente. Com a sua velocidade, baixo custo, infinita reprodução e uma aura de neutralidade, a fotografia pareceu responder ao problema da ameaça ao passado. Por todo o mundo, antropólogos, etnógrafos e turistas ‘saíam’ para ‘documentar’ o passado ‘primitivo’ antes que desaparecesse. Como parte da revolução tecnológica, a fotografia foi utilizada extensivamente no esforço colonial para categorizar, definir, dominar e por vezes inventar um ‘outro’. A representação tornou-se numa forma de poder cultural e legal (Corbey : 1993 ; Scherer : 1992).

O que a câmara estabeleceu pela primeira vez foi um meio de produzir um arquivo à escala e ao ritmo das exigências do capitalismo. O capitalismo precisava da câmara como um meio de negociar a disjunção social produzida pela sua expansão convulsiva.

A diferenciação ocidental de outras culturas através de uma rede de hierarquias temporais foi acompanhada pela reavaliação do seu próprio passado como um símbolo de diferença : a diferença ao longo do tempo da cultura moderna relativamente a si mesma. Nos bancos de memória gerados pela proliferação das câmaras e pelo empilhamento de imagens, a era do progresso encontrou uma das suas principais medidas. Mas, tanto a câmara mapeou as transformações do ambiente físico e social, que ajudou a transformar os nossos conceitos de história e de memória (McQuire : 1998: 122 - 126).

A câmara não apenas oferece um novo nível de detalhe e uma nova forma de precisão, mas a reprodução mecânica multiplica em grande medida o número de documentos históricos que se pode produzir. Sob a pressão do escrutínio fotográfico, o passado permanece bastante visível, aberto à reinterpretação. Quando as ‘provas históricas’ se multiplicam exponencialmente, a linha do tempo já não tem coerência. Tanto o conceito do arquivo como o modelo da compreensão histórica com o qual foi associada ameaçam decompor-se.

Tal como outras formas de conhecimento herdadas do século XIX, a memória foi disputada entre os pólos da objectividade e da subjectividade. A memória objectiva exigiu a reprodução do passado tal como ele era, sem mediação ou alteração. De acordo com esta determinação, recordar consiste em preservar ou restaurar uma presença original – um evento, uma experiência ou encontro – que constitui um ponto de origem estável. A crença que o significado está totalmente presente neste ponto situa a importância conferida a um modo de representação ‘neutro’. A memória objectiva exige um símbolo ou um meio que consiga representar a origem, sem qualquer desvio.

O pensamento acerca dos imperativos da memória ‘boa’ e ‘má’ tem uma longa história, pelo menos desde que Platão sonhou com uma memória não contaminada pelos símbolos. Mas se o objectivo platónico da repetição perfeita permaneceu inalterável, os meios para atingir este fim sofreram uma profunda transformação. As mnemónicas clássicas enfatizavam o estabelecimento de imagens expressivas na mente de acordo com uma topografia familiar como os edifícios de uma rua ou os quartos de uma casa. À medida que uma pessoa se imaginava a deslocar-se através do espaço, as memórias armazenadas em locais diferentes podiam ir sendo recolhidas. No entanto, à medida que a ciência se tornou a matriz do conhecimento moderno, a personalização foi rigorosamente excluída, e a boa memória foi reformulada em termos da exterioridade da reprodução objectiva. Seguindo-se a Bacon e a Newton, a verdade científica veio a relacionar-se com a possibilidade de repetir resultados experimentais sob condições controladas. Esta mudança epistemológica ajudou a criar um novo terreno para a história e memória baseadas na repetição exacta. No século XIX, a reivindicação científica de penetração na realidade foi igualada pela da história relativamente à exibição apenas do que tinha realmente acontecido.

O que se torna cada vez mais evidente neste período são os caminhos paralelos ao longo dos quais as relações sociais de memória foram canalizados na modernidade. O importante tem sido a necessidade da memória de ser ‘sustentada’ de forma que o seu testemunho tenha autoridade. Tal como a ciência ‘dura’, a verdade histórica exigiu provas ‘duras’ e evidências repetitórias. Esta racionalidade instrumental condiciona uma grelha instrumental na qual tudo o que não é conservado é, implicitamente, desvalorizado, colocado sob o signo da experiência não substanciada e impedido de entrar nos altos domínios do conhecimento. Para além disso, na demanda de um passado ‘sustentado’ não servem quaisquer ‘suportes’. Os ditames da objectividade que fizeram com que fosse imperativo para a história demarcar-se dos discursos ‘especulativos’ como a filosofia, a teologia e a literatura, também orquestraram a preferência pela fotografia relativamente à pintura e a outros meios de representação. Em busca da objectividade, o ‘olho’ da câmara tem-se suplantado ao olho humano. De tal forma a ‘realidade’ é susceptível a ser definida pela câmara que tudo o que não é filmado, fotografado ou televisionado começa a adquirir uma qualidade etérea, como se quase não existisse, não provado, não consubstanciado, ilegítimo.

De forma clara, o potencial de sedução relativamente à imaginação científica reside na sua capacidade de objectificar a visão. Um aparelho mecânico capaz de registar as aparências mais transitórias e reproduzi-las infinitamente trouxe consigo uma promessa sem precedentes quanto à preservação da história sem mediação, memória sem texto. A câmara parecia oferecer um modo de representação neutral, o que era essencial à nova era da certeza histórica (McQuire : 139 - 167).

Logo que as primeiras imagens fotográficas começaram a circular, as vistas de terras distantes atingiram uma grande circulação nos centros metropolitanos europeus e norte americanos. Paralelamente ao retrato, eram as cenas exóticas e fora do comum que faziam disparar a imaginação do público. A fotografia passou a ser um importante instrumento do comércio da alteridade e alimentou novos discursos relativos ao ‘outro’ – da antropologia às narrativas populares de viagem e de vida colonial. A câmara foi instrumental na orquestração de uma visão colonial, tornando visível o que antes era ocultado ou desconhecido. Graças ao seu realismo magnético, as fotografias ofereceram propriedades únicas de possessão simbólica que se traduziram num meio ideal de coleccionar e catalogar o novo mundo Um dos objectos mais significativos que surgiram com a fotografia foi o postal : um símbolo barato e coleccionável dos horizontes da modernidade. A circulação dos postais cresceu exponencialmente no final do século XIX. A fotografia do postal tornou-se um espaço discursivo central na construção da identidade nacional, unindo as preocupações do antropólogo e as necessidades do administrador aos prazeres do viajante e à curiosidade dos que ficavam em casa. Com o seu repertório de imagens – onde o mito do nobre selvagem era contrabalançado por imagens de degeneração ‘nativa’, e a cidade estrangeira foi transformada num conjunto locais monumentais – o postal epitomizou o desejo ocidental de tornar as colónias visíveis e completamente legíveis. O postal exemplificou a maneira como a câmara concretizou os discursos do século XIX sobre a raça, permitindo que os corpos de outros fossem divididos em categorias visuais e inseridos em hierarquias evolucionistas. Um tema recorrente da etnografia deste período foi o estabelecimento de um catálogo fotográfico de todas as raças do mundo. A prática fotográfica estava ligada às teorias raciais assumidas pelo colonialismo. Separando o observador colonial dos ‘nativos’ observados, o acto de fotografar encaixava-se perfeitamente nos padrões do progresso tecnológico, objectividade científica e pureza da razão com os quais o ocidente procurou forjar o seu poder, enquanto as imagens científicas pareciam confirmar a diferença racial como um sinal visível de hierarquia cultural.

Tal como os novos veículos de transporte de pessoas e bens, a câmara transportou imagens e visões, mapeando a superfície da Terra e diminuindo a distância entre o estranho e o familiar de formas completamente novas. Fundiu o prazer de ver o que não era visto com o poder sob a forma de um conhecimento com aspirações normalizadoras. A câmara foi instrumental no avanço do imperialismo, unindo o olhar ‘duro’ da vigilância militar e burocrática com os prazeres panópticos ‘suaves’ do viajante voyeur. A fotografia, e mais tarde a cinematografia, não apenas facilitaram o exercício directo da força militar e do domínio colonial, mas também permitiram aos colonizadores acreditar que se apropriavam de territórios não familiares. Para o viajante no estrangeiro, a câmara muitas vezes funcionou literalmente como um ecrã para o olho, servindo para domesticar o estranho impondo um enquadramento padrão em cada encontro com a diferença racial e cultural. Para o visualizador no seu próprio país, as imagens de ‘outros’ tornaram-se objectos de consumo, e desempenharam um papel crucial em assegurar o perímetro da identidade ocidental numa altura de exposição crescente à diversidade racial e heterogeneidade cultural. Nesta fase, as fotografias que retractavam o passado esplendoroso de ruínas arcaicas misturavam-se com imagens da vida colonial contemporânea, alimentando a imaginação colonial. A ‘periferia’ era não apenas representada por ruínas, muitas vezes figurava como uma ruína, distante no tempo e, simultaneamente, aproximada no espaço. Esta tradução da diferença cultural em disjunção temporal por virtude da lei do progresso tem sido central na construção da política global moderna. A designação das raças não-europeias como relíquias, sobreviventes arcaicos cujo momento criativo pertenceu a um passado perdido, tem sido intrínseca ao senso do ocidente sobre o seu destino moderno. Mesmo quando os ‘primitivos’ eram comparados às crianças, eles tinham uma diferença : nunca cresciam. Estavam excluídos do presente. O seu único futuro possível era, por destino, a assimilação (McQuire : 1998 : 192 , 196).

As diversas práticas, instituições, conhecimentos e prazer gerados pela câmara fotográfica têm constituído uma parte integral do processo de modernização, ajudando a definir o alcance global do capitalismo e as ambições coloniais do ocidente, ao mesmo tempo que facilitou a reorganização instrumental da vida política e social do ‘lar’. A transformação das sociedades em entidades seculares, urbanas, industriais, que forjou os horizontes da modernidade, é inimaginável e seria impraticável na ausência fotográfica. A invenção da fotografia alargou imediatamente o número de pessoas para quem a representação individual era económica e ideologicamente acessível. Se o retrato fotográfico conferia o status de subjectividade, igualmente reforçava uma nova inscrição da identidade social. A fotografia transforma a prática da auto-identidade e amplia a duplicidade do termo ‘sujeito’, apontando, por um lado, em direcção à soberania do indivíduo e, por outro, para a possibilidade de se sujeitar à regra de um discurso normalizador. Se a popularização da fotografia marcou um alargamento do terreno social da representação, também formou o limiar histórico para além do qual a vigilância já não viria de um plano superior – quer o olho vigilante pertencesse a Deus, ao rei ou ao estado – , dispersando-se cada vez mais por entre a população. A vigilância institucionalizada constitui-se sob a forma de um indelével ponto de referência de tal forma que, frequentemente, é a ausência da câmara – ao invés da impossibilidade de lhe escapar – que se faz sentir actualmente. Aprendemos a importância e o prazer de nos vigiarmos a nós próprios. A alternância entre o narcisismo e o voyeurismo na formação do espectáculo moderno é, sem dúvida, condicionada pela maneira como ergueu resistência à crença no invisível. O que não pode ser visto, fotografado ou filmado assume muitas vezes uma existência ansiosa e flutuante.

Atravessando categorias de significação, as fotografias trespassam a fronteira entre o conhecimento ‘comum’ e o ‘científico’. Não necessitavam do conhecimento de um especialista para a sua interpretação. Como a compreensão da fotografia começava e acabava com o espectador, qualquer pessoa tinha capacidade para alcançar o significado de uma fotografia (Jenkins : 1993 ; Crary : 1995).Bourdieu sugeriu que a fotografia de família é simultaneamente um índice de unidade familiar e um instrumento de forjar essa mesma unidade : “a prática fotográfica apenas existe e subsiste a maior parte do tempo graças à sua função familiar de reforçar a integração do grupo familiar estabelecendo o sentido que esta tem de si própria e da sua unidade (Bourdieu : 1965 : p. 19)”. Mas, tal como simboliza a unidade, a fotografia de família também funciona como um sinal da dispersão. A câmara pertence à era das migrações em massa, na qual a experiência da separação foi generalizada, e a fotografia familiar assume toda a sua força apenas quando representa uma unidade familiar que passou por muitas transformações (McQuire : 1998 :60). A disseminação da diáspora fez com que o desenraizamento cultural fizesse parte da experiência da modernidade. Para aqueles que deixam o lar, a ruptura não é apenas espacial, mas sim temporal. No país anfitrião, o migrante é muitas vezes dividido entre a nostalgia do passado e o investimento na promessa do futuro. Se a câmara fotográfica abriu novos horizontes ao olhar do colonizador e do turista, também é verdade que outorgou aos diaspóricos um meio poderoso de ultrapassar a distância e a ausência, de unir os pólos que a vida separou. Tal como a fotografia assinala um locus de ausência irredutível, também é frequentemente o talismã que evoca a possibilidade de regresso (McQuire : 1998 : 5 ,7).

Se a cidade é o lar da modernidade, então a modernidade reinventa o lar. Reconhecer isto não é tentar isolar a cidade moderna dos seus espaços circundantes, mas sim reconhecer a dominação que sobre eles é exercida. A metrópole industrial vai subjugando cada vez mais ‘o campo’ à sua volta, extraindo-lhe as matérias-primas, a alimentação e as gentes. Dentro desses circuitos, a cidade moderna não apenas tem sido o destino físico de incontáveis vagas de migração; tem-se também constituído como um destino psíquico, um locus de capital simbólico e uma rampa em relação à projecção do poder imperial. A cidade tornou-se um grande laboratório perceptual. Novas experiências espaciais e temporais conduziram ao surgimento de necessidades de representação. Cada vez mais, o ambiente urbano procurou acompanhar a memória do ‘campo’, sob a forma de jardins botânicos, jardins zoológicos, parques públicos, etc. O ‘arranha-céus’ não apenas simbolizou uma ruptura radical com as estruturas do passado , mas transformou os hábitos perceptivos do presente. Olhando para baixo a partir de grandes altitudes, foi encontrada uma nova topografia : a paisagem urbana. A partir do solo, a verticalidade dos grandes edifícios desafiou o acto de ver. A paisagem urbana foi transformada por uma nova geração de veículos. Para além de providenciarem a infra-estrutura de novas relações económicas e sociais, os novos veículos revolucionaram a percepção. A visão encontrava-se cada vez mais vezes numa rota de colisão com o ambiente urbano, projectado numa série de encontros que transformaram a natureza da paisagem na brusquidão da chegada e na rapidez da partida. A electricidade alterou significativamente a aparência visual da cidade. A lâmpada incandescente converteu a escuridão nocturna das ruas em artérias de luz e as vitrines das lojas em mundos de fantasia, carregando o habitat urbano com as qualidades imateriais e espectaculares previamente reservadas a locais de exibição como o teatro, o diorama e os parques de diversão (McQuire : 1998 : 209 , 210).

Referências:

CLARKE , Graham , 1992 , “Introduction” In Portrait Photography , Reaktion Books , Washington.

CORBEY , Raymond , 1993 , “Ethnographic Showcases – 1870-1930” In Cultural Anthropology.

CRARY , Jonathan , 1988 , “Modernizing Vision” In Vision and Visuality , Bay Press , Seattle.

_____ , 1995 , Techniques of the Observer , MIT Press , Cambridge , Massachussets , London.

GREEN , Nicholas , 1990 , The Spectacle of Nature : Landscape and Bourgeois Culture in Nineteenth Century France , Manchester University Press , Manchester.

JENKS , Chris , 1995 , Visual Culture , Routledge , London & N.Y..

MCQUIRE , Scott, 1998 , Visions of Modernity , Sage , London , T.O. , N.D

terça-feira, maio 30, 2006

Impermanência

Conta-se que no século passado, um turista americano foi à cidade do Cairo, no Egipto, com o objectivo de visitar um famoso sábio.O turista ficou surpreendido ao ver que o sábio morava num quartinho muito simples e cheio de livros.As únicas peças de mobília eram uma cama, uma mesa e um banco.
- "Onde estão os seus móveis?" - perguntou o turista.
E o sábio, rapidamente, perguntou também:
- "E onde estão os seus...?"
- "Os meus?!" - surpreendeu-se o turista.
- "Mas eu estou aqui só de passagem!"
- "Eu também..." – concluiu o sábio.

sexta-feira, maio 26, 2006

A Crise Nacional


É comummente aceite que Portugal está em crise. Fala-se, sobretudo, da crise económica, uma espécie de objectificação de um conjunto de problemas que afectam o estado português e que, para a maioria das pessoas, se traduz num único predicamento que as afecta diariamente: a falta de dinheiro. Gostaria aqui de distinguir dois tópicos:
- O primeiro é o conceito cultural de crise. A “crise” é um artefacto, ou seja, trata-se de um objecto criado por uma cultura, ainda que seja imaterial. Existe num nível ideológico. Tem propriedades que lhe são atribuídas e mantém relações com um grupo social. É um objecto “espectral” (perdoem-me esta expressão que parece saída do esoterismo), uma vez que parece emanar do próprio grupo que afecta, como se tratasse de um fluxo vivo cuja principal característica é prender-nos a todos a uma condição sombria. A crise é uma espécie de assombração que nós próprios geramos.
- “Crise” é uma palavra de origem grega (“krino”, peneirar). Neste segundo tópico, deve entender a expressão no seu sentido de questionamento, problematização. Criticar é levantar questões sobre um determinado assunto e, por vezes, por em causa um paradigma.
Em relação ao primeiro tópico, pode dizer-se que “a crise” está bastante enraizada no pensamento português, uma vez que a ela atribuímos muitos fenómenos e é aceite por uma vasta maioria como uma entidade real. Quanto ao segundo, não posso afirmar com tanta firmeza que o povo português seja “crítico”. É sobre esta segunda abordagem que se debruça o presente texto.
As coisas não correm bem no nosso país. É este o mote para um número incontável de conversas e desabafos. Os principais “ataques” são dirigidos, sobretudo, à classe política. Seguem-se as classes profissionais ligadas à saúde e à educação. São-lhes atribuídos os seguintes defeitos: má gestão dos serviços que oferecem, oportunismo, incapacidade para desempenhar as funções que exercem e, em casos extremos, a corrupção. Não é a minha intenção negar nem confirmar tais considerações na análise que aqui teço, mas sim demonstrar que a origem dos problemas que nos afectam a todos não está circunscrita a alguns sectores da sociedade portuguesa.
No meu entender, a raiz dos problemas nacionais é cultural. Importa aqui salientar que a noção de cultura empregue neste texto aponta para o universo de classificações que estruturam a experiência humana. Distancio-me, como tal, da noção de cultura entendida como “Belas Artes”ou outras actividades conotadas com as “elites intelectuais”. Cultura tem a ver com o problema do sentido, com a forma como cada grupo classifica e entende o seu próprio mundo. É uma “estrutura mental” (e simultaneamente corporal) que organiza todas as acções (das mais banais às mais criativas), conscientes ou não. É precisamente nesta dimensão que está a origem dos males que todos, aparentemente, conhecemos tão bem. O subdesenvolvimento está dentro de nós e o mau funcionamento das instituições resulta do prisma que usamos para ver a realidade.
O verdadeiro problema nacional está no nosso ser. Somos um grande grupo de aldeões, com horizontes tão estreitos quão limitadas são as nossas ambições. O nosso pensamento é cartesiano e hermético, separamos e mantemos a realidade em unidades fechadas. A interdisciplinaridade é um mito nas universidades, nas mais diversas instituições, e no pensamento do lusitano mais comum. O português tem uma extrema dificuldade em dar sentido a aspectos complexos e, sobretudo, multidimensionais. Quer cada coisa no seu lugar e a criatividade poética é remetida para a esfera do lúdico.
Somos extremamente catárticos e pouco críticos. Estamos especialmente interessados em “descarregar” os nossos sentimentos mais básicos (ódio, inveja, vingança,etc) sob a forma de escândalo grupal. Evitamos uma análise objectiva e serena que conduza a projectos pessoais de cidadania. Não acreditamos na democracia nem nas suas instituições. Os objectivos alcançam-se através da “manha” e das amizades que cada um tem. Temos medo que o sistema nos caia em cima. Por “sistema” entenda-se “o conjunto de pessoas às quais é reconhecida uma autoridade e que têm meios para exercer violência (‘tramar os outros’)”. Quanto mais abstracto for o “sistema” mais medo exerce sobre as massas. O português sobrevaloriza a autoridade, deseja-a para que possa abusar dela e teme-a quando sente que outro a tem. Toda a gente quer ser chefe ou presidente, por vias formais ou simplesmente pelo poder que o protagonismo oferece.
Em Portugal não gostamos da diferença mas toda a gente se considera tolerante. Somos simplesmente paternalistas em relação a grupos que já têm um estatuto. «Ninguém é racista»! No entanto, o repúdio por outras formas de opressão não faz parte da agenda politicamente correcta dos portugueses. Desde que a vítima seja branca o ataque é legítimo. A personalidade de cada um (maneira de ser), a ausência de sinais exteriores de poder (dinheiro, conhecimentos, cargos, etc) e a aparência são alguns dos veículos mais usados para oprimir. E a opressão é epidémica…
Eu penso que, na sua maioria, os portugueses sofrem de um tipo muito específico de complexo de inferioridade. A auto-estima da gente lusitana está dependente da dimensão da sua “aldeia”. Para se sentir bem com ele próprio, o portuga tem que coexistir num espaço restrito com os seus iguais. O seu amor-próprio é muito volátil em zonas abertas. Daí que seja tão invejoso. Ora, a inveja mais não é do que a sensação de que não se está à altura de outra pessoa. Nós invejamos quem nos faz sentir mais pequenos. A cobardia é outra expressão deste complexo de inferioridade. Atacando os mais vulneráveis o português compensa, temporariamente, a sensação de impotência que o domina no dia-a-dia.
Todos os problemas atribuídos à “crise” e à “bandalheira” nascem precisamente da condição do ser português. Portugal funciona como uma aldeia porque é povoado por aldeões.
Delinearei, seguidamente, três exemplos que ilustram o meu argumento:
- O subdesenvolvimento económico. No nosso país a iniciativa empresarial é um bem escasso. Quem tem capital para investir procura o conforto e satisfazer ambições pequeno-burguesas ligadas ao estatuto. Os nossos cidadãos mais endinheirados preferem “investir” num Ferrari que cause inveja aos vizinhos do que em projectos que visem aumentar a qualidade dos seus produtos e, com isso, tornar a sua empresa mais competitiva. Além disso, preferem que os seus lucros provenham de “manobras” feitas ao estado (fugas ao fisco, subsídios…) do que serem eles a criar riqueza.
- As elevadas taxas de sinistralidade nas auto-estradas portuguesas. A deficiente cultura de cidadania (e de civismo) faz com que o automobilista dê largas ao seu egoísmo, desrespeitando as normas do código da estrada, as normas do bom senso e, sobretudo, a consideração pelos outros. Quando a autoridade policial está presente tudo muda de figura.
- Os maus-tratos infligidos às crianças. Todos nós conhecemos, graças aos holofotes da imprensa, diversos casos de pedofilia e de infanticídio, imbuídos de crueldade e perversão. Infelizmente, este tipo de violência não é exclusivo do nosso país. Nem eu pretendo debruçar-me sobre esta classe de criminosos. O problema português quanto ao desrespeito pelos direitos das crianças é outro. Regra geral, as gentes lusas não têm a menor aptidão para se relacionarem com os jovens. Os atentados à dignidade física, moral e psicológica enquadram-se no conceito de “educação” da plebe portuguesa. Todos os dias, pediatras, pedopsiquiatras, professores e educadores lidam com o calvário de milhares de crianças provocado pela estupidez e incúria de um povo que nunca amadurece, que se limita a envelhecer. Educar à boa maneira portuguesa é reprimir os comportamentos criativos, é mostrar o sofrimento e forçar a que este seja aceite como inerente à própria vida, é empurrar para os professores a responsabilidade total de uma formação intelectual e cívica… Ser pai (ou mãe) é convencer uma criança de que o mundo tem os horizontes televisivos, é usar o stress acumulado ao longo do dia para dar um valentes berros, umas estaladas sonoras, e desta forma mostrar quem manda. É assim que se faz um português: ensina-se a ter medo de quem tem mais poder, espartilham-se os horizontes e reduz-se a pó a auto estima do ser em desenvolvimento. A violência psicológica exercida sobre as crianças portuguesas é tremenda. Daí que muitas tenham dificuldade em estruturar as emoções e o pensamento. O insucesso escolar disseminado é a expressão mais visível deste problema.
É na relação entre pais e filhos que se mantém o subdesenvolvimento português. É a violência sobre as crianças que impede o desenvolvimento de cidadãos autónomos, ambiciosos e criativos. Daí que um Portugal melhor não seja um cenário realista, pelo menos a curto prazo. É provável que os jovens violentados do presente mantenham o ciclo de repressão, tornando-se nos agressores do futuro.
Torna-se necessário, nesta fase do argumento, perguntar: qual é o método mais adequado para superar a “crise nacional”? Como é que se muda a maneira de pensar de um povo? A via mais simplista, característica das ditaduras, é através de uma política do espírito. Todos os regimes de autoridade do século XX procuraram moldar as mentalidades, forçando um sistema de valores que procurasse legitimar o poder estabelecido. A censura dos meios de comunicação (ou “filtragem de conteúdos”), os programas leccionados nas instituições escolares e a propaganda governamental foram alguns dos principais instrumentos. Apesar destes meios de controlo do pensamento colectivo terem-se mostrado eficazes na manutenção do regime, nunca conseguiram criar um novo homem. Do regime soviético ao Reich nazi, do fascismo italiano ao comunismo chinês, os governos nunca conseguiram que a maioria da população adquirisse os contornos da sua visão antropológica. Foram capazes, isso sim, de aproveitar as pulsões e sentimentos populares a seu favor.
Uma vez que operar uma política do espírito é uma solução inviável (e que levanta diversos problemas éticos), urge procurar outros trajectos. Uma hipótese que eu coloco, completamente aberta à discussão, tem a ver com a indução da transformação social. Ou seja, uma maneira de modificar o espírito é alterar as condições de vida. Não me refiro a aumentos salariais ou outras medidas que visem acrescentar conforto ao quotidiano dos portugueses. Estou antes a pensar em alterações na estrutura do quotidiano e numa percepção diferente da realidade. Para que abandonem “a perspectiva do aldeão” os portugueses têm que ser impregnados com um senso de impermanência no seu dia-a-dia e entrar em contacto frequente com a alteridade real. O que é que isto quer dizer? Trata-se de operar uma ruptura nas rotinas das pessoas, forçá-las a sair do universo banal em que elas repousam. Fazer com que a transformação do seu modo de vida produza ao longo tempo a consciência de que nada é eterno nem imutável (a impermanência). Quando o meio circundante muda frequentemente as coisas (objectos materiais, estatutos, instituições, etc) começam a perder o valor, a deixar de ser sagradas. A única permanência passa a ser a condição humana. A forma de encarar o Homem (ou seja, a noção de pessoa) pode e deve ser enriquecida com o contacto frequente com o ‘exótico’, com aquele que é diferente. Não me refiro às “diferenças comuns”. A negritude e a homossexualidade já são banais. Não servem para alargar horizontes nem mexem com a nossa visão do mundo. Este país precisa de gente “estranha”, de pessoas que estimulem a nossa curiosidade e nos façam reflectir sobre as nossas próprias características. É necessário que o universo se torne mais complexo na cabeça dos portugueses.
Uma forma de dinamizar culturalmente o país, e de mobilizar os seus cidadãos, é dar-lhe um sonho. Um dos problemas que nos afectam e que contribui fortemente para o marasmo colectivo é a carência de um identidade nacional forte, viva no imaginário e nas emoções das pessoas. A falência do nosso patriotismo foi concomitante à degradação do Estado Novo. Durante o regime de Salazar, a estrutura política e o patriotismo eram um só. O revivalismo histórico, a concepção do império ultramarino, os símbolos nacionais e a política de unidade nacional formavam o tecido identitário do povo português. Portanto, o Estado Novo confundia-se com a identidade nacional. A impopularidade do regime fez com que as massas deixassem também de acreditar no seu país. Portugal era diferente porque tinha uma história única, com 800 anos; era diferente porque estava presente em quatro continentes; tinha uma missão no mundo: espalhar a sua cultura e “evangelizar” os povos indígenas. Este imaginário português foi sendo desvalorizado à medida que o Estado Novo avançava no seu crepúsculo. Mais tarde, o golpe de estado de 1974 veio agudizar a já débil identidade nacional. Rompeu completamente com os órgãos do regime e com a sua cultura. Os valores nacionalistas (ou patrióticos) foram esvaziados no seu conteúdo político, uma vez que os símbolos nacionais adquiriram uma conotação negativa, passaram a estar associados ao “regime fascista” derrubado pela revolução dos cravos.
A revolução fez emergir novos ideais e valores, mas nenhum que desse aos portugueses uma nova imagem do seu país. De um Portugal voltado para o ultramar, a nova classe política, procurou aderir culturalmente à Europa. No entanto, a adesão à comunidade europeia nunca conseguiu colmatar o deficit identitário.
Uma identidade nacional começa por ser um sonho, ou seja, um projecto que povoa os ideais e que estrutura as aspirações de um povo. Uma nação que não tem um sonho colectivo vê-se quase forçada a observar constantemente o seu próprio umbigo. O povo português tem sido nas últimas décadas uma espécie de grupo de hebreus perdidos no deserto à espera que Moisés os salve. Como não têm sinais de Deus há muito tempo já duvidam que Ele exista; não sabem para onde vão e divertem-se a inventar ídolos que tanto têm de dourado como de efémero. Um governante que consiga pôr os portugueses a sonhar tem o país na mão, para o bem ou para o mal, seja qual for o sonho. Por isso, não devemos esperar que um qualquer político oportunista sonhe por nós. Se queremos um Portugal melhor temos todos que estimular a nossa capacidade onírica.

segunda-feira, maio 15, 2006

Breve Apreciação do Código Da Vinci

A primeira vez que eu ouvi falar no célebre livro de Dan Brown foi através de uma conhecida. O que me chamou a atenção foi a excitação e curiosidade que ela demonstrava sempre que falava na obra. Estava ansiosa que saísse a edição portuguesa. O título pareceu-me sugestivo e perguntei-lhe a razão de tal entusiasmo. «É um romance de mistério baseado em factos históricos sobre a vida de Cristo. Está a causar grande polémica. Parece que Cristo “andava” com Maria Madalena…».
Eu li na web algumas sinopses e fiquei mal impressionado. Por isso decidi que quando o livro chegasse a Portugal eu não o leria. Achei (e continuo a achar) que o senhor Dan Brown conseguiu produzir um texto altamente comercial destinado à curiosidade pornográfica das massas. Nos dias que correm há dois ingredientes que tornam uma narrativa mais apelativa do ponto de vista do grande público. O primeiro é a vida privada das figuras públicas e o segundo são as teorias de conspiração. Ora, o autor de O Código Da Vinci conseguiu reunir os dois ingredientes: a suposta vida privada de Jesus e uma enorme cabala dentro da igreja católica. O resultado foi um tremendo sucesso de vendas.
Rejeitei o livro por uma questão de higiene mental. Detesto teorias de conspiração e sinto nojo da “má pornografia” (a exploração comercial da vida privada das figuras públicas). Uma obra (escrita ou filmada) não é pornográfica por mostrar nudez ou ter um conteúdo sexual. A pornografia é um tipo de estética muito particular baseada na hipocrisia social. Trata de mostrar o que habitualmente está escondido (por "pudor”) com uma sensação de realismo. É uma espécie de peep-show onde o observador tem o poder absoluto, sobretudo para fazer juízos de valor. As “sopeiras” do nosso país são grandes pornógrafas, na medida em que são “mirones” da intimidade alheia com um medo crónico de uma possível inversão da perspectiva. O pornógrafo deleita-se espreitando os vícios dos outros e sente-se seguro por detrás da sua máscara de virtudes. Eu repudio este tipo de pornografia seja ela dirigida a uma suposta vida privada de Cristo ou à relação entre um jogador de futebol e uma apresentadora.
Para além das estratégias comerciais, o autor demonstrou pequenez de espírito ao colocar a falsa questão da vida familiar do Nazareno. Isto porque a vida de Cristo que nós conhecemos através do Novo Testamento e de alguns textos apócrifos tem valor como alegoria. Jesus, mais do que um homem, é uma mensagem. Não há acontecimentos banais porque todos os seus actos são sempre ensinamentos dirigidos a um projecto de humanidade. Ainda que Cristo tenha tido uma vida familiar com Maria Madalena, onde é que está a alegoria? E que lição podemos tirar do “facto” de Jesus ter sido pai?
O livro questiona a natureza divina de Cristo. Afirma que o Nazareno foi alguém muito importante, com grandes ensinamentos, mas terreno na sua condição. Este argumento é utilizado pelos judeus há cerca de dois mil anos. Foi precisamente esta questão que conduziu Jesus ao julgamento feito pelos fariseus e que teve como consequência a Paixão. Não sei se o facto da obra ter sido levada ao cinema por um realizador judeu (um activíssimo “defensor” de Israel da “causa judaica”, o senhor Steven Spielberg) é um produto do acaso. O que não me parece acaso nenhum é a grande quantidade de “documentários” e “documentos históricos” que tem surgido, nos últimos dez anos, procurando reduzir Cristo à condição de profeta.
Eu recordo-me da Paixão de Cristo (de Mel Gibson) quando estreou no cinema. As críticas, reivindicações e ameaças por parte da inteligentsia judaica pareciam nunca mais acabar. Uma vez que os sacerdotes judeus eram os “maus da fita”, o filme iria acicatar o anti-semitismo nas comunidades cristãs.
A realidade é que a identidade judaica é muito forte e beneficia de um paternalismo francamente exagerado. São os sobreviventes do holocausto, da inquisição, dos faraós do antigo Egipto, dos filisteus, e por aí fora… E isso dá-lhes autoridade moral para tudo. Para atentar contra a fé de muçulmanos, dominar palestinianos, controlar Hollywood, obter privilégios políticos, usar os serviços secretos (Mossad) para cometer assassinatos no mundo inteiro, torturar terroristas… e fazer uma campanha muito bem disfarçada contra as fundações da fé cristã.

domingo, maio 14, 2006

Hackers e a Política do Medo


Nas sociedades ocidentais contemporâneas, dominadas pelas tecnologias de informação, a expressão “hacker” é de uso corrente. Ela surge, na maioria das vezes, associada à ideia de crime e de perícia no âmbito das novas tecnologias. A imagem do hacker mais comum foi construída pela “fear factory” imbuída nos meios de comunicação de massas. Todos os dias somos bombardeados pela imprensa (televisiva, escrita e online) com notícias de atentados terroristas, epidemias, catástrofes naturais, crimes da mais diversa natureza, e um rol de cenários distópicos que provoca em nós um medo constante e inconsciente. É a este processo que eu chamo fear factory: um engenho cujo propósito é o de provocar o medo generalizado.
O temor (e por vezes o pânico) teve ao longo da história um papel determinante na estruturação das sociedades – ocidentais e não só. Como instrumento político serviu ora para manter o status quo, ora para provocar o ímpeto das massas em direcção a um objectivo pré-determinado. O medo foi, e continua a ser, um meio poderosíssimo de controlo comportamental.
Uma forma encontrada pelo capitalismo global para encontrar novos mercados, produzir consumidores e concentrar o poder económico em pequenos grupos foi a de gerar “guerras imaginárias”. Falo dos cenários de violência com que todos os dias somos confrontados através dos meios de comunicação. Com a expressão “imaginárias” não quero dizer que não se baseiem em fenómenos ‘reais’. No entanto, há que ter em conta que o jornalismo é um processo de selecção da realidade. Um jornalista, quando confrontado com uma enorme diversidade de situações, tem que decidir quais são “notícias”. Tem que extrair um acontecimento específico do emaranhado de situações caóticas que compõem a realidade, separar o que é relevante do que é banal. Para o conseguir, projecta-se na mente do público, indo à procura do que poderá suscitar interesse. O leitor tem memória, por exemplo, de algum acontecimento feliz passado na Palestina? Provavelmente, não. Isto porque a realidade palestiniana foi filtrada para que só tivéssemos acesso ao terror e infortúnio. Para além deste processo de escolha, os acontecimentos adquirem a forma da própria cultura jornalística quando são narrados. Ler uma notícia ou ver uma reportagem na televisão sobre os atentados do 11 de Setembro não é a mesma coisa que estar lá. Isto porque a notícia é uma narrativa que obedece a critérios por vezes semelhantes ao do texto literário. A notícia tem uma introdução, um desenvolvimento e uma conclusão. As pessoas envolvidas são-nos apresentadas como “personagens”. Pode-se sempre encontrar uma alegoria (uma “lição” ou um juízo moral) e preocupações evocativas (o jornalista pretende que o público “sinta”, partilhe das mesmas emoções que ele teve quando presenciou o fenómeno). Devo salientar que as notícias são narrativas particulares. Particulares porque, apesar de se tratarem de “histórias” contadas a um público que não presenciou os acontecimentos, elas são percepcionadas através de um prisma cultural muito específico: a noção de realismo. Nós acreditamos que uma notícia é a transmissão pura de uma realidade. Isto acontece porque ao longo da nossa estruturação cognitiva “aprendemos” a distinguir as narrativas apresentadas num telejornal das narrativas “ficcionais” (literatura, filmes, etc). Portanto, o reconhecimento da realidade, no que toca às narrativas, baseia-se no local onde esta é apresentada e no formato da apresentação (por exemplo, todos estamos habituados às imagens “aos solavancos” das reportagens e dos documentários; transmitem uma sensação de realidade em estado bruto).
Um dos problemas provocados pelo “carácter literário” das notícias é o facto deste dar origem a essências. Pode fazer com que uma dada pessoa, um grupo de pessoas ou um dado fenómeno se associem permanentemente a um atributo (ou conjunto de atributos). Um exemplo desta associação é a criação de estereótipos. Quando alguém fala em islamismo não nos vem logo à cabeça a ideia de terrorismo? A expressão “Casa Pia” não passou a ser sinónimo de pedofilia? Para criar um estereótipo, por vezes, basta que um acontecimento (real ou não) passe a ser notícia.
É aqui que entra a “fear factory”. Da mesma forma que alguns progenitores menos esclarecidos incutem nas suas crianças o medo do Papão, os meios de comunicação têm criado estereótipos cuja única função é a de assustar as massas. A Fábrica do Medo é o verdadeiro terrorismo, a política do terror. A forma como as pessoas se organizam socialmente e as relações de poder no seio de uma sociedade são estruturadas pelo medo provocado pelos estereótipos que as massas interiorizaram. O medo faz também com que os seres humanos reprimam as suas pulsões afectivas, restando ao indivíduo seguir apenas motivações relacionadas com a sede de poder por um lado, e, por outro, procurar colmatar a ausência de amor pela construção de um eu (ou self) centrado em si mesmo. A bulimia, o consumismo exagerado e a competição desenfreada são corolários patológicos de um eu faminto que procura captar tudo o que o rodeia. Uma personalidade self-centered é característica das crianças nos primeiros estágios de desenvolvimento. No entanto, esta estrutura pessoal mantém-se, na maioria dos casos, ao longo da vida dos indivíduos nas sociedades ocidentais. O sujeito individual não amadurece porque o medo não o deixa “abrir-se” aos outros. Como tal, limita-se a envelhecer, chegando ao final da vida com o mesmo temperamento adolescente dos 14 anos mas com muitas mais frustrações.
O hacker é um dos estereótipos que povoam a nossa consciência. É um conceito nascido da política do medo. Para a maioria das pessoas, hacker é alguém que conhece segredos da informática (uma espécie de alquimista das tecnologias de informação) e que os usa com fins maléficos. Invasões de computadores, destruição de páginas web, fraudes bancárias e criação de vírus são todos fenómenos associados na imaginação popular à palavra hacker. Um hacker é um tipo de génio do mal com imenso poder. É graças a este conceito que milhares de jovens (ou milhões) se sentem tentados a aderir aos grupos (ou subculturas) conotados com o fenómeno hacker. Em primeiro lugar, o simples facto de poderem vir a pertencer a uma comunidade que foge aos parâmetros das instituições hegemónicas já é motivo de atracção e fascínio. O jovem procura aderir a este tipo de grupos de forma a moldar a sua identidade pessoal. Pretendendo afirmar a sua identidade, o jovem procura um grupo onde possa sentir-se diferente da maioria. Ninguém quer ser mais uma ovelha no rebanho… Em segundo lugar, as pessoas querem ir ao encontro de conhecimentos que lhes confiram poder. A atracção que o poder exerce é intrínseca à natureza humana. Neste caso, tratamos da capacidade de transgressão, a expressão por excelência do poder, que confere ao sujeito individual uma sensação de liberdade (fuga aos constrangimentos impostos à maioria). O problema surge é quando essa atracção se torna totalitária, ou seja, quando “substitui” (ou procura substituir) outros interesses que requerem um amadurecimento da estrutura emocional do indivíduo (o estabelecimento e manutenção de relações sociais, por exemplo).
O conceito de hacker está longe de se esgotar nesta visão de “alquimista do ciberespaço” (ou génio do mal). A realidade é que existem inúmeras comunidades do ciberespaço onde a expressão adquiriu outros contornos.
Eu tenho reparado que muita gente associa o Linux ao fenómeno hacker. Esta analogia tem vários fundamentos e nenhum está relacionado com os crimes informáticos. Vejamos:
1 - Nas sociedades de linux, “hacker” quer simplesmente dizer “programador; alguém que colabora no desenvolvimento de software”. Estes “profissionais” reagem com veemência a que se chame “hackers” aos piratas. «Um hacker é um ‘especialista’ que tem como objectivos desenvolver as ciências computacionais para o bem de todos; quem se dedica à pirataria e às invasões deve ser chamado ‘cracker’».
2 - A maioria das distribuições de linux (para utilizadores) é gratuita. O desenvolvimento deste software não tem, na generalidade dos casos, objectivos comerciais. Existe aqui uma consciência política nem sempre explícita. O linux tem uma identidade própria construída em grande medida por oposição a uma outra: a da Microsoft. A empresa do Sr. Bill Gates é conotada com os valores e lógica do capitalismo. Neste quadro, o “software Windows” causa aversão a quem se quer distanciar destes valores. Neste jogo de juízos, o linux afirma-se através de uma identidade “comunitária”, não é propriedade de ninguém, é feito por todos e para todos. Diversos grupos arrastam (muitas vezes sem o saberem) valores do comunismo para a esfera das tecnologias de informação. A oposição entre Windows e Linux reflecte a dicotomia “propriedade privada” versus socialismo. Este dualismo está presente logo nas descrições relativas à produção dos códigos-fonte dos programas (programação). Na obra The Cathedral and the Bazaar, o autor (Eric Raymond), para citar um exemplo, expõe dois modelos: o modelo da catedral, no qual o código do software está restringido a um grupo exclusivo de programadores; e o modelo do bazar, segundo o qual o código é desenvolvido na Internet à vista de toda a gente. Neste contexto dualista, as identidades “hacker” e linux casam-se abençoadas pelos valores que se opõem às hegemonias e à propriedade privada.
3 - As distribuições de linux oferecem aos utilizadores e programadores uma liberdade que não está patente noutros sistemas operativos. Uma pessoa pode modificar programas, copiá-los, distribui-los, até pode “montar” o seu próprio sistema operativo instalando os componentes que pretende. Em linux o utilizador chega a ter a opção de transformar o próprio núcleo do sistema (kernel). A única coisa que não pode fazer é vender o software. Esta liberdade (de exercer a criatividade) conferida pelo linux é muito estimada pelos grupos hacker, que a converteram em ideologia. Os hackers querem ser produtores (ter a liberdade de criar).
Descrevi aqui dois grandes modelos conceptuais associados à expressão “hacker”. O mais comum (disseminado na cultura popular) é produto da política do medo patente nos meios de comunicação social. Os utilizadores sentem que existe uma ameaça e adoptam uma atitude defensiva, do tipo “estado de sítio” permanente. Esta postura evita que tomem posições críticas em relação à ordem estabelecida (a estrutura social e política que os enquadra) e, como tal, serve para perpetuar o status quo. Tem outro efeito, desta vez económico, que é o de manter a indústria de segurança informática (que produz antivírus, firewalls e toda a panóplia de mecanismos defensivos). O segundo modelo é mantido por algumas elites que adoptaram uma postura de “liberdade e criatividade” muito semelhante à que reina na arte contemporânea. Nesta situação, o “hacker” é um indivíduo que domina várias técnicas, procura a originalidade e a experimentação e não se vende aos interesses consumistas.
Não é de estranhar que cada um destes modelos tenha surgido em classes sociais diferentes. A repressão foi sempre exercida com maior influência nas classes populares através da cultura de massas. Por outro lado, as ideologias de resistência nasceram e foram mantidas, ao longo da história, no seio de elites intelectuais. Quem pode, resiste. Quem não pode, esconde-se.

sexta-feira, fevereiro 10, 2006

Comportamentos de Consumo: "Ir às compras"

Há pouquíssimas análises sobre o tema “fazer compras”. As práticas e comportamentos deste domínio têm sido invisibilizadas pela psicologia e ciências sociais, havendo algumas excepções. Parece que “ir às compras” é um tipo de acção sem qualquer importância, um aspecto ligado às idiossincrasias do indivíduo. Para muitos, é simplesmente entrar numa loja para adquirir bens que necessitamos. O mecanismo da escolha parece reduzido a: gastar o menos possível e obter o máximo de qualidade ou de quantidade. Nada poderia estar mais longe da verdade.
Fazer compras serve um leque de objectivos sociais. Em primeiro lugar, contém um aspecto essencial que é o exercício da escolha. Durante o exercício da selecção, o ‘cliente’ apropria as mercadorias. Transforma-as, partindo da amálgama de objectos na loja em artefactos que reflectem o comprador e as relações sociais em que se insere. Os objectos passam a transportar uma identidade pessoal distinta e a incorporar relações sociais específicas. Este processo é exemplificado pela culinária familiar. Uma pessoa converte um conjunto de materiais crus, adquiridos como mercadorias, numa refeição que exprime e incorpora as relações que unem os membros da família. Em segundo lugar, deambular e ‘andar a ver’ as coisas é uma actividade prazenteira em si mesma, mesmo sem se chegar a comprar nada. Os clientes não estão à mercê do mundo dos objectos. Em vez disso, a sua interpretação cria um espaço que lhes confere uma sensação de liberdade. Este espaço não é independente de certos determinantes sociais. No entanto, o processo da sua criação permite certos graus de liberdade. O prazer da prática de fazer compras deriva da habilidade para estar sozinho ou acompanhado, de fazer as coisas sem urgência, sem a obrigação de comprar nada, de estar fora de casa e operar sem os constrangimentos das responsabilidades (Lehtonen & Maenpaa, 1997; Carrier,1993).
O prazer que existe na prática de fazer compras não deriva apenas da possibilidade de autonomia. Muitas vezes o aspecto agradável desta actividade é a sociabilidade que lhe está associada. Pode ser uma forma de passar algum tempo em companhia de outra pessoa. Providencia um meio para a criação e manutenção das relações sociais. Desta forma afecta o processo de identificação social. Enquanto se ‘faz as compras’, a comunhão pode ser edificada através da acção partilhada. Fazer compras cria uma grelha de acção segura e conveniente para um momento de descontracção partilhado.
Fazer compras tem a ver com fantasias relacionadas com a mudança de identidade individual. A loja é um teatro no qual se inventam e testam papeis. É a multidão e a sociabilidade dos locais públicos que criam o cenário de anonimato e que dão origem a uma forma de libertação relativamente aos constrangimentos quotidianos. O senso de não se ser bem quem se é, ou então, de não se ser ninguém (o que é muito provável que aconteça numa multidão) conduz a uma fantasia identitária. Isto implica não apenas que os clientes sejam como camaleões no que diz respeito à sua identidade, mas que, tal como crianças, joguem voluntariamente com os seus papéis sociais. Fundamental à experiência de fazer compras é o prazer que deriva da potencial abertura e remoção das fronteiras do eu. Enquanto forma social, a prática de fazer compras é possível graças à emergência de um sujeito moderno com uma tendência para o sonho romântico; fazer de conta que se é outra pessoa.
Há ocasiões em que o ambiente de uma loja actua como uma forma de grelha destinada a alterar o comportamento dos clientes. De certa forma, o comprador veste uma nova pele na loja, experimentando uma personalidade ou estilo de comportamento. Tal como existem categorias de “vestir a rigor” ou “desportivo”, conceitos que se opõem relativamente ao vestuário, também há diferentes expectativas acerca da forma como cada um se comporta dentro de um estabelecimento comercial, consoante se trate de um bar ou de um loja de roupa, por exemplo.
Um antropólogo (Daniel Miller, 1997) compara o prazer de gastar dinheiro à excitação sexual. No acto de comprar um artigo há uma sensação de poder e de propriedade que alivia a tensão e produz um sentimento efémero de realização pessoal. Se bem, que gastar dinheiro tenha a sua própria sensualidade, esta comparação parece-me excessiva. Além disso, há outras sensações envolvidas na aquisição de bens. Muitas vezes, o consumidor investe numa acumulação gradual de objectos e o idioma dominante provém de um senso de propriedade e descendência e não da sexualidade; o objectivo é o armazenamento ou coleccionismo e não a fruição.
A forma como se gasta o dinheiro merece ser analisada. Há determinados bens de consumo nos quais a poupança é fundamental enquanto noutros é completamente irrelevante. Porque é que o cliente de um hipermercado se preocupa em “descobrir” as marcas mais baratas quando vai comprar papel higiénico, leite, detergente e pasta de dentes? Quando compra bilhetes para assistir a um concerto ou quando vai jantar fora com os amigos o dinheiro parece que já não é tão importante… A resposta a esta questão está na forma como o consumo se relaciona com o Eu (ou Self, se preferirem a expressão em inglês). As actividades de consumo ligadas à diversão e ao prazer reforçam aspectos no indivíduo tais como auto estima, auto confiança e condição anímica. O reforço do Eu implica um aumento de expressividade e da sensação de realização pessoal. O indivíduo tende a procurar o prazer, “abrindo-se” à expressividade. Com esta “abertura”, as condicionantes sociais (neste caso, financeiras) passam para segundo plano.
No caso dos comportamentos que visam despender menos dinheiro, o processo é de retenção do prazer. Na poupança há uma lógica centrípeta (dirigida para dentro). O importante é acumular.
Estes dois princípios, o do consumo expressivo (dispendioso) e o da retenção, andam quase sempre articulados. A expressão “poupar numas coisas para gastar noutras” é disso exemplo. O princípio da retenção oferece a estabilidade e o enquadramento para que os sujeitos vivam “habitualmente”, com serenidade e com rotinas, uma vez que todos necessitamos de uma estrutura social com um grau de confiança elevado. Por sua vez, o princípio do consumo expressivo providencia uma fuga à monotonia e o libertar das tensões que foram acumuladas pelo princípio da retenção.
Quando uma pessoa vai fazer compras a um supermercado é muito comum vermos os dois princípios em acção. O consumidor adquire diversos produtos chamados de “primeira necessidade” (higiene, alimentação, etc) e acaba por complementar esta tarefa com a concomitante aquisição de chocolates, bolachas ou outros doces. Este comportamento, para além de articular os princípios de retenção com o reforço do Eu, reflecte uma outra articulação: a lógica sacrifício / compensação. Digamos que o comprador compensa o seu “trabalho” de fazer compras adquirindo certos bens destinados ao seu prazer pessoal.
Há um outro aspecto dentro do mesmo tema (aquisição de bens) que merece ser aqui tratado: a forma como as identidades de género estruturam as práticas e discursos de consumo.
A prática de fazer compras na sociedade moderna (ocidental e industrializada) é uma actividade que surge associada ao género. Especificamente, é encarada como algo relacionado com a esfera feminina. Consequentemente, quando as crianças são socializadas nos seus papeis de género, aprendem, através do processo de aquisição da sua identidade, que fazer compras faz parte das actividades que ajudam a definir o papel da mulher, e, especialmente, o papel distinto da doméstica. Por contraste, o papel do homem adulto é definido em termos do trabalho assalariado, i.e., como “ganha-pão”e, desta forma, é identificado com actividades bastante desligadas do consumo.
Um aspecto importante que permite aos homens fazer compras sem pôr em perigo a sua imagem masculina é a presença de uma ideologia. Esta ideologia distingue as suas compras enquanto actividade das formas femininas, protegendo a sua identidade de género. Contém um contraste formulado em termos de uma dicotomia entre o instrumental contra o expressivo. Assim, os homens são inclinados a encarar as compras como uma actividade puramente dirigida à aquisição, relacionada com a satisfação de necessidades. As mulheres, por sua vez, vêm-nas como uma actividade que contém prazer em si mesma e que se relaciona com a gratificação de desejos. Isto é dizer que os homens presumem que a actividade em causa apenas ocorre quando se estabeleceu a existência de uma necessidade, não vendo qualquer valor intrínseco na actividade em si. As mulheres, por outro lado, apesar de reconhecerem o papel da satisfação de necessidades, estão também inclinadas a ver a actividade como algo que tem um valor inerente, independentemente do facto de se comprarem ou não as mercadorias.
Os homens, seja por causa da sua socialização ou devido ao seu tradicional maior envolvimento no mundo do trabalho assalariado, estão predispostos a encarar o consumo como uma actividade subordinada a esta esfera, mesmo sendo “trabalho feminino”. Consequentemente, eles não só não esperam que seja agradável mas presumem que os padrões sejam os mesmos do mundo do trabalho (a racionalidade e a eficiência). Isto conduz à tendência dos homens de definir esta actividade através da ideia de necessidade. Por contraste, as mulheres tendem a seguir um ponto de vista relacionado com o lazer. Inclinam-se a definir a actividade como algo agradável e a rejeitar qualquer referência puramente instrumental ou utilitária.
A ideologia masculina não apenas oferece a possibilidade dos homens fazerem compras sem porem em causa o seu senso de género, mas providencia também argumentos para descrever o estilo feminino de levar a cabo esta tarefa: “ é irracional”, reforçando o estereótipo masculino que diz que as mulheres têm uma conduta mais impulsiva, emotiva e desligada do raciocínio. Empregando o modelo masculino como um padrão, os homens conseguem criticar as mulheres por: (a) despenderem demasiado tempo nesta actividade, (b) visitar demasiadas lojas, (c) serem incapazes de se decidir quanto a produtos alternativos, e (d) porem fim a uma “excursão” a diversas lojas graças à compra do primeiro artigo que viram.
Em resposta, as mulheres empregam a sua concepção de fazer compras como uma ideologia; justificando a sua própria conduta e negando a legitimidade da masculina. As mulheres comummente queixam-se que os homens: (a) praticam pouco a actividade, (b) quando fazem compras vão a poucas lojas, (c) não sabem o que querem, (d) muitas vezes compram a primeira coisa que vêm com a pressa de saírem da loja e, (e) não estão a par das mercadorias nem dos preços destas.
Desenvolvendo um ponto de vista especificamente masculino relativamente à prática de fazer compras, em contradição com o feminino, os homens concretizam duas acções. Primeiro, providenciam uma racionalidade que lhes permite fazer compras sem comprometer a sua identidade de género. Segundo, articulam uma ideologia que serve para condenar e subestimar a conduta feminina numa esfera em que elas predominam manifestamente. Fazendo-o, os homens evitam ter que reconhecer o facto de que as mulheres não apenas desempenham esta tarefa de consumo, mas que também manifestam uma perícia superior neste processo. Empregando a ideologia masculina como base para uma crítica, a perícia feminina nesta esfera é efectivamente subestimada, e, como tal, a sua conduta é representada sob a forma de uma confirmação do estereótipo masculino. Desta forma, “a importância e competência das mulheres neste campo – que de outra forma poderia ser vista como uma ameaça à dominação societal e cultural masculina – é castrada (Campbell, 1997).

Referências : CAMPBELL, Colin, 1997, “Shopping, Pleasure and the Sex War” In The Shopping Experience, Sage, London.
LEHTONEN , Turo-Kimmo & MAENPAA , Pasi , 1997 , “Shopping in the East Centre Mall” In The Shopping Experience , Sage , London , T. O. , N. D..
CARRIER , James , 1993 , “The Rituals of Christmas Giving” In Unwrapping Christmas , Clarendon Press , Oxford.
MILLER, Daniel, 1997, “Could Shopping Ever Really Matter ?” In The Shopping Experience , Sage , London , T. O. , N. D..