domingo, julho 04, 2010

Sedução, Publicidade e Demagogia

«Se o objectivo do jogo é vencer, então o batoteiro é o único verdadeiro jogador » - Jean Baudrillard

A sedução pode ser definida como um processo através do qual se incita deliberadamente uma pessoa em direcção a uma resposta comportamental pré-determinada. Há muitas áreas onde a indução dos comportamentos se faz sentir. No entanto, a palavra “sedução” parece empurrar-nos para um tipo muito específico de influência : a sedução sexual. A sexualidade utilizada como instrumento para “regular” os comportamentos dos outros é sem dúvida um aspecto importante nas sociedades ocidentais. Contudo, é necessário salientar que há muitas formas de sedução para além da manipulação erótica.
Uma questão relevante dentro desta temática tem a ver com a relação entre sedução e poder. Serão a mesma coisa, uma vez que o poder pode ser definido como a capacidade de alguém impor a sua vontade aos outros? Ambos existem sempre em situações relacionais. Isto é, tem-se poder em relação a alguém e a sedução é sempre dirigida a outra pessoa. Portanto, não se pode dizer que “o sujeito x tem poder” ou que “tem sedução”. O poder e a sedução existem sempre num quadro de relações sociais. Apesar deste aspecto em comum, o poder envolve um leque de estratégias de controlo mais vasto. A coerção é um exemplo de poder que não diz respeito à sedução. Na minha opinião, a sedução é um dos aspectos do poder. Não são a mesma coisa mas o segundo engloba o primeiro.
A sedução baseia-se nos conhecimentos que um dado indivíduo possa ter relativamente ao perfil psicológico dos outros e à mestria de determinados métodos de persuasão. De uma forma simplificada pode-se dizer que seduzir é fazer alguém sentir a necessidade de levar a cabo uma determinada acção.
A questão das necessidades dos seres humanos é extremamente vasta e complexa. Todos conhecemos as necessidades fisiológicas (que procuram repor um determinado equilíbrio no organismo), os princípios de evitação da dor e de procura do prazer, as necessidades sociais (ou gregárias) e as culturais (às quais somos conformados desde a infância). No entanto, todas estas forças motivacionais podem ser manipuladas (transformadas na consciência do sujeito individual) e existe a possibilidade de fazer emergir novas necessidades. Eu não pretendo neste artigo classificar umas de “reais” e outras de “artificiais”. Parece-me inútil tentar definir a “genuinidade” de uma força motivacional. O importante é tentar descrever a dinâmica das necessidades para perceber como o comportamento dos indivíduos pode ser influenciado.
Um dos aspectos mais importantes da sedução é a criação de estados liminares. Uma condição liminar é aquela que existe entre dimensões, não é uma coisa nem é outra. Não tem uma categoria específica. Estes estados provocam quase sempre o fascínio e estimulam a imaginação. O crepúsculo (entre o dia e a noite), os géneros indefinidos (travestis, transsexuais, hermafroditas…), as encruzilhadas entre caminhos, são alguns exemplos de liminaridade. Nalgumas culturas, estas “zonas intermédias” têm conotações com o mundo da magia e do sobrenatural. A forma como são percebidas pelos seres humanos escapa aos mecanismos de categorização do real. Daí que sejam extremamente susceptíveis de evocar emoções e conduzir à fantasia. É por isso que a liminaridade é tão importante quando falamos de sedução. Para a sedução acontecer o sujeito tem que deixar fugir a estabilidade do real. Tem que se encontrar perante uma situação que não consegue explicar.
Há quem veja a sedução como um jogo, com regras próprias, no qual sedutor e seduzido dialogam através de estratégias comuns. Nada poderia estar mais longe da verdade. A sedução baseia-se na transgressão de normas, na desestabilização da consciência do sujeito e na subversão da percepção do real. Trata-se de um jogo de poder no qual a regra é a batotice. Consiste em fazer com que o sujeito perca o controlo consciente da situação e seja levado pelas “fintas” do sedutor. Para que o leitor compreenda melhor a “natureza batoteira” desta área passo a descrever, como exemplo, um possível “modelo” de sedução:
· Colocar o sujeito perante um objecto apetecível, ou seja, perante um ser que tem o potencial de satisfazer as suas necessidades mais imediatas.
· Procurar desinibir o sujeito.
· Criar um ambiente propício a que o sujeito se envolva, colocando-o num contexto que lhe parece “familiar” (e seguro).
· Evocar emoções ou sentimentos agradáveis e elementares (alegria, vaidade, curiosidade...)
· Ter sempre a preocupação que o sujeito tenha dificuldade em identificar o que sente. Provocar uma separação entre o que o sujeito sente e a consciência (reconhecimento) das suas próprias emoções ou sentimentos.
· Contornar a capacidade de antecipação do sujeito. Todos nós conseguimos, até certo ponto, prever as acções dos nossos interlocutores. Essa capacidade permite-nos “controlar” as situações e os nossos estados de espírito. Daí que o sedutor tenha que surpreender, contornando as “defesas” mentais do sujeito.
· Tentar que o sujeito confunda o que sente com o que o sedutor pretende que ele sinta.
· Dar a iniciativa ao sujeito para ir ao encontro do objecto. Nunca “empurrar” o objecto em direcção ao sujeito.
· Fazer um jogo de aproximação-distanciamento entre o sujeito e o objecto. Não se deve deixar que o sujeito alcance na totalidade o objecto, uma vez que isso provocaria o fim da motivação. Não se deve afastar completamente o objecto, uma vez que isso provocaria a resignação do sujeito. Este jogo de aproximação-distanciamento vai fazer com que o desejo aumente.

Como é óbvio, não há “fórmulas” concretas de sedução. O acto de seduzir é sempre um exercício de criatividade adaptado às características individuais do sujeito.
A expressão “sedutor” é muitas vezes utilizada com uma conotação negativa. O sedutor (ou sedutora) é frequentemente associado a actos de vigarice fria e calculista, como se tratasse de um burlão que se aproveita dos sentimentos dos outros para atingir objectivos egoístas. De facto, o mundo está cheio de oportunistas, com uma incapacidade para a empatia, e que, instrumentalizando os outros, conseguem obter benefícios pessoais. No entanto, eu não classifico estes indivíduos como sedutores. Isto porque a sedução é um jogo de criatividade que precisa de uma motivação emocional, ou seja, o sedutor tem que ser estimulado para que a sua fantasia possa nascer. Na minha opinião, há três “ingredientes” fundamentais que tornam um sedutor competente: a criatividade, o conhecimento sobre a natureza humana e a paixão. O sedutor mais motivado para “encantar” é aquele que já foi encantado. Normalmente, os oportunistas frios e calculistas são maus sedutores. Conseguem alcançar os seus intentos seleccionando “alvos” vulneráveis e utilizam quase sempre os mesmos estratagemas. Há pouca criatividade. Há é sentido de oportunidade.
Até agora analisei apenas a manipulação dos comportamentos no contexto das relações interpessoais. Este é um tipo de influência que se procura exercer sobre um único indivíduo ou sobre um pequeno grupo. Tão (ou ainda mais) fascinante é o “controlo mental” dirigido às massas. A preocupação com o imaginário e com a opinião dos colectivos deu origem, ao longo do século XX, a indústrias poderosíssimas de publicidade (com o intuito de promover a venda de bens de consumo) e de propaganda (com objectivos políticos). Estas instituições são, no fundo, fábricas de cultura. Ou seja, são mecanismos que promovem a transformação das visões do mundo, dos comportamentos e dos “estilos-de-vida”. Para levar a cabo esta tarefa, uma agência de publicidade terá que elaborar estratégias para “fintar” o espírito crítico das pessoas que constituem o alvo da campanha. A publicidade vai buscar algum conhecimento relativo à psicologia das relações interpessoais mas tem, sobretudo que se socorrer dos meios de influência visual. Passo a descrever algumas estratégias da publicidade patentes em anúncios televisivos, outdoors, etc:
- A ambiguidade entre várias formas de prazer. Quando o bem de consumo tem como principal função dar prazer ao seu consumidor o publicitário procura reforçar esta noção acrescentando outras formas de prazer. Por exemplo, os anúncios de doces (gelados, bombons, etc) estão quase sempre carregados de conotações eróticas. O erotismo tem, necessariamente, que ser implícito uma vez que o que se pretende é aumentar a ideia de prazer em abstracto.
- As cores. Quando se trata de promover um objecto a cor é um assunto importante. Objectos dirigidos ao prazer efémero têm, normalmente, cores quentes (vermelho, amarelo e dourados). Quando se procura que um produto evoque a excelência do progresso científico os tons eleitos são os metálicos (prateados, cromados, etc). O azul e o verde são também muito utilizados pela indústria informática.
- Casar o objecto com uma identidade pessoal. O slogan Só Para Homens é um exemplo de como um after-shave pode ser transformado num símbolo de masculinidade (isto é, de identidade masculina). Uma campanha que eu achei particularmente interessante foi a da citroen envolvendo a modelo Cláudia Schiffer. Eu ouvi várias interpretações simplistas quanto à estratégia por detrás desta campanha. A mais vulgar que eu ouvi foi: “Eles querem que a gente pense que se comprar o citroen xara leva também a Cláudia”. Se a mensagem dos anúncios fosse assim tão directa não teria funcionado. Realmente, a campanha dirigia-se a um público maioritariamente masculino. No entanto, a estratégia era outra. Um dos anúncios terminava com o seguinte slogan: “Citroen Xara, instinto protector!”. Era nesta frase que poderíamos encontrar a verdadeira estratégia publicitária. Todo o enredo do spot procurava transmitir uma ideia de protecção e segurança para o ocupante do automóvel (a Cláudia). No nosso “inconsciente colectivo” a identidade masculina alicerça-se muito na função protectora em relação à mulher. Ao transmitir a ideia que o Citroen Xara é muito protector, a campanha conseguiu transformar um veículo mecânico num símbolo de masculinidade. A modelo Cláudia Schiffer foi bem escolhida, uma vez que cumpre a função de símbolo de feminilidade. Este tipo de estratégias funciona muito bem, uma vez que as pessoas estabelecem ligações (agregam-se) a objectos que têm a sua identidade. Um indivíduo sente-se “mais homem” se adquirir objectos conotados com a masculinidade.
- Os teasers. Um “teaser” é um anúncio com apenas parte da mensagem que se procura transmitir. É um método que visa provocar a curiosidade no sujeito. Pode funcionar, uma vez que capta a atenção e põe o indivíduo a pensar. No entanto, existe sempre o risco de desiludir quando a segunda parte da mensagem for exposta.
- O discurso oral. A publicidade foi buscar aos grandes oradores da história as estratégias para transmitir ideias através da voz. Seja via rádio ou através da voz-off de um anúncio televisivo, o método é quase sempre o mesmo: frases simples e perceptíveis por todos, em alto e bom som, repetidas sucessivas vezes. O tom de voz deve inspirar determinação (enérgico) mas deve ser em simultâneo descontraído e muito apelativo.
- Objectos que criam necessidades. Uma criança que compre uma barbie está necessariamente a comprar também um “conjunto de necessidades”. Mais tarde ou mais cedo, a barbie vai “precisar” de uma panóplia de adereços (roupas, o amigo Ken, etc). Quem compra uma consola de jogos, adquire a “necessidade” de periféricos (manípulos, memórias, câmaras, etc). Neste tipo de objectos, a publicidade procura “demonstrar” ao consumidor o poder que o produto oferece. A necessidade de adquirir objectos acessórios tem a ver com uma lógica de expansão do poder individual. Para a criança que tem uma barbie comprar o Castelo Mágico significa expandir o universo das brincadeiras, ou seja, ter mais poder de opção.
- A credibilidade de uma figura pública. Apresentar num anúncio alguém que é conhecido por todos e usar essa figura para “aconselhar” o espectador é criar uma “garantia” de honestidade («Este tipo não vai mentir porque toda gente o conhece»). Além disso, a figura pública induz um clima de familiaridade que aproxima o espectador do produto publicitado.

Na publicidade política (propaganda) estão, e sempre estiveram, grandes manipuladores. Adolph Hitler, com todos os defeitos que se lhe conhecem, foi um estratega extremamente eficaz no que toca à propaganda. Passo a descrever alguns aspectos desta “competência” hitleriana:
- A criação da bandeira nazi. Hitler foi buscar a suástica ao ocultismo alemão, colocou-a sobre um disco branco centrado numa bandeira vermelha. Criou um ícone extremamente forte, de reconhecimento imediato e singular. Utilizou-o invertendo a lógica do simbolismo. Um símbolo é sempre a representação de algo que já existe; a bandeira nazi é a representação de algo que está para vir.
- Como orador, gritava electrizando a multidão, transmitindo uma imagem de força e de certeza. A pose era firme, só a cabeça e os braços mexiam. O gesticular de Hitler foi treinado, procurando mimetizar os “passes mágicos” de um ilusionista. Tudo isto para criar uma aura sobrenatural, acrescida pelo seu olhar penetrante iluminado pelo azul intenso dos olhos.
- O discurso simples e furioso ia ao encontro dos sentimentos das massas. Descrições maniqueístas dividiam a Alemanha entre os absolutamente bons (arianos) e os absolutamente maus (judeus). Citando o próprio Hitler: «não se pode apontar vários inimigos ao povo senão o ódio dispersa-se; só pode haver um único inimigo para que a mobilização seja absoluta.».

Já o “nosso” Salazar não era tão dotado para a manipulação popular. No entanto, a capacidade que lhe faltava para gerir o espírito das multidões era compensada por uma profunda destreza no “um-para-um”. Tinha:
- Uma intuição quase sobrenatural para detectar as ambições dos que o rodeavam.
- Conseguia esconder as suas intenções e fazer com que as pessoas o conduzissem ao poder.
- Fingia-se de fraco para que os adversários tivessem confiança suficiente para mostrar a cara.
- Colocava-se quase sempre numa “posição neutral” entre as forças dominantes, de maneira a poder geri-las.

Os políticos das chamadas “democracias ocidentais” são mais completos, na minha opinião, no que toca a estratégias de manipulação:

- Utilizam ícones simples e apelativos nas campanhas.
-Têm uma aparência que procura evocar “estabilidade”, “bom senso” e “moderação”. Predominam os fatos azuis-escuros e cortes de cabelo discretos. O professor Cavaco Silva surgiu no segundo mandato enquanto primeiro-ministro com umas “entradas brancas”, que transmitiam uma certa “maturidade”.
- No discurso evitam formular opiniões que os comprometam.
- Utilizam frequentemente expressões como “democracia”, “liberdade”, “desenvolvimento”, “progresso” e “futuro”. Estas expressões foram sempre de difícil definição e, graças ao uso indiscriminado, foram perdendo o significado concreto. Actualmente, são palavras que não querem dizer nada mas que evocam sentimentos positivos nas massas.
- São mutantes eternos e constantes. A identidade política de cada um é inconsistente, fluida, de forma a permitir a sobrevivência do político em qualquer contexto. São muito dinâmicos os políticos profissionais das “democracias parlamentares”.
- Nunca negam o que é óbvio. Afirmam-no de maneira a ganhar credibilidade.
- Procuram transmitir uma imagem de descontracção e bom humor. Mostram que têm muitos amigos e que o povo está com eles. Isto dá-lhes uma imagem de poder.
- Gostam de tornar pública uma imagem de vida familiar estável. Desta forma, conseguem uma empatia com o público.
Eu não considero que os políticos e os publicitários na sua maioria sejam verdadeiros sedutores. Como eu procurei explicar, a sedução pressupõe um envolvimento emocional entre sedutor e seduzido. A manipulação presente na publicidade e na demagogia não tem a emoção e a fantasia como principais fontes de motivação. Não excluo a possibilidade de um político se apaixonar pelo povo e conseguir seduzí-lo através da expressão do seu deslumbramento. No entanto, a maioria serve-se de técnicas por demais conhecidas. A capacidade de surpreender é quase nula na política e na publicidade, e isto é um sintoma do distanciamento entre quem manipula e o objecto da manipulação.
A sedução é algo maravilhoso. É a arte de fazer com que os outros sintam o que nós sentimos.

segunda-feira, junho 07, 2010

Consumo e Suas Conotações

Uma forma simples de definir o consumo pode ser esta: a utilização de um recurso que não foi produzido por nós. Esta definição reflecte claramente a separação de duas esferas – a da produção de um determinado artefacto e a da sua apropriação.
O consumo enquanto conceito é uma invenção da Economia. Pelo menos nos últimos cem anos, esta ciência tem invadido a nossa forma de conceber o mundo. Expressões correntes como “produção em massa”, “oferta e procura”, “gestão de recursos” são alguns exemplos de como a cultura da Economia penetrou no quotidiano das sociedades ‘ocidentais’. A nossa forma de pensar foi, ao longo do tempo, adquirindo os contornos da ciência económica. De tal forma que esta gramática constituiu-se numa visão do mundo.
Um dos conceitos mais fortes com que a Economia povoou o nosso pensamento foi o de mercado ( livre). Este conceito constitui-se num modelo que é utilizado para pensar a realidade, definir estratégias de acção e gerar ideologias. Trata-se de um modelo que reside em certas assunções. Talvez a mais básica seja a de que o mundo é constituído por indivíduos livres. A crença que esses indivíduos detêm uma espécie de livre arbítrio significa que eles são a única fonte e os juízes dos seus desejos, e que esses indivíduos não estão sujeitos a constrangimentos para além daqueles que aceitam voluntariamente. Não há, consequentemente, nenhuma estrutura imperativa além do indivíduo, nenhuma grelha moral operativa que seja definitiva. Associado a este individualismo está a assunção de que as razões que levam as pessoas a desejar isto ou aquilo são irrelevantes. Tudo o que interessa é que elas desejam, com o corolário que deviam satisfazer esse desejo caso possam. A outra assunção chave é que as pessoas são pragmaticamente racionais. Essencialmente isto quer dizer que elas querem mais por menos.
O modelo descreve um mundo que consiste apenas em compradores e vendedores. Estes podem ser indivíduos ou organizações, e um actor que é comprador a dada altura pode ser vendedor noutra. Compradores e vendedores: ambos querem mais por menos, de tal forma que o conflito entre eles é inevitável. O comprador quer despender o mínimo de capital por um artigo e o vendedor quer cobrar o máximo de dinheiro por ele.
Uma das razões para que o modelo tenha a força e a capacidade de atracção que tem é o facto de estar enraizado no que está construído como a natureza humana fundamental. Seria, com efeito, o que as pessoas fariam espontaneamente caso fossem deixadas ao acaso, se a sua propensão para comercializar, trocar e cambiar não fosse constrangida. Estando alicerçado sobre uma concepção de natureza humana fundamental, o mercado pode ser utilizado para exprimir uma variedade de valores e pressupostos, muitos dos quais ajudam a explicar a atracção populista da ideia de Mercado Livre. Por exemplo, diz-se que o Mercado é uma protecção contra um Estado intruso e que, portanto, é o garante da liberdade pessoal. Diz-se também que permite que os compradores disponham de maior utilidade e satisfação do que teriam doutra forma. É uma fonte de eficiência, assegurando uma alocação de recursos mais racional. É o mais certo motor do crescimento económico e da prosperidade pessoal. Por detrás destas ideias está a ligação entre o Mercado e o ocidente liberal capitalista, o local com maior liberdade e riqueza que existe.
Importa salientar que conceitos como consumo, consumidor, mercado, aquisição, remetem para uma lógica economicista. Contra esta corrente, as ciências sociais têm procurado dar explicações para uma nova arena de relações sociais, onde se tecem identidades e sistemas de valor que contrariam a ideia de absoluta liberdade e racionalidade do consumidor da Economia. O que está em jogo é muito mais do que a lei da oferta e da procura. São os significados e os valores sociais – muitas vezes contraditórios – imbuídos na forma como nos relacionamos com os objectos que não produzimos. Quero dizer que o consumo, ao contrário de outros sistemas de intercâmbio de objectos, se define na sua natureza pela existência de um separação entre produtores e utilizadores. Uma pessoa consome porque apropria um objecto que não produziu (Carrier:1997).
Na nossa sociedade subsistem vários mitos sobre consumo. Um deles opõe a genuinidade das relações humanas ao materialismo dos bens de consumo. Este mito compreende as seguintes asserções: o consumo é baseado no materialismo como um desejo não razoável de bens; o consumo opõe-se à sociabilidade já que é baseado num interesse em objectos que substitui o interesse prévio pelas pessoas. Estamos cada vez mais dominados pelo mundo das compras e, como tal, diminuídos na nossa humanidade. Interessa aqui salientar que, tanto os grupos étnicos como as mercadorias devem ser compreendidas como objectificações utilizadas para criar e explorar projectos de valor. Como tal, relacionam-se com aspectos ou imagens ideais da pessoa humana. O que deve ser rejeitado é o argumento de alguns autores que debatem o pós-modernismo o qual aponta para a existência de um discurso sobre a autenticidade das pessoas, sendo este reduzido pelo campo não-autêntico das mercadorias. (Miller:1997). Os objectos, tal como as pessoas, têm histórias de vida. Nascem para uma comunidade e ao longo do tempo e vão adquirindo identidades que se transformam. Quando adquirem o estatuto de mercadorias o carácter dinâmico do que representam continua a subsistir. As mercadorias são geralmente vistas como representações materiais típicas do modo de produção capitalista. Na verdade, os objectos de consumo têm vidas sociais. A mercadoria (como conceito) é um estado no qual as coisas podem entrar e sair. Os objectos “candidatam-se” ao estado de mercadoria e isto refere-se aos padrões e critérios (simbólicos, classificativos e morais) que definem a capacidade das coisas serem trocadas em qualquer contexto social e histórico particular. As mercadorias representam formas sociais e distribuições de conhecimento bastante complexas. Em primeiro lugar, tal conhecimento pode ser visto de duas perspectivas: o conhecimento técnico, social e estético que existe na produção do objecto; e, por outro lado, o conhecimento que reside na apropriação da mercadoria através do consumo. O conhecimento de produção que é registado num objecto durante a sua realização é bastante diferente do conhecimento de consumo que dele é traduzido. As duas leituras irão divergir proporcionadamente à medida que as distâncias sociais, espaciais e temporais entre produtores e consumidores aumentam (Appadurai:1986).
Nas primeiras fases do capitalismo, o trabalho (assalariado) formava o corpo central do senso de identidade para a maioria das pessoas. Actualmente, são as mercadorias e os padrões domésticos de consumo que jogam um papel importante na construção social e cultural. É cada vez mais no conjunto das mercadorias trazidas à vida pelas práticas de consumo que objectivações morais, cosmológicas e ideológicas são construídas para criar as imagens pelas quais nós compreendemos quem somos, quem fomos e quem seremos ou deveremos ser no futuro. Uma identidade construída através do consumo oferece muito mais poder e é consideravelmente mais controlável do que uma identidade dependente da sua colocação dentro de sistemas de produção.
Temos que deixar de pensar o consumo como uma manifestação de escolhas individuais. A decisão básica que um indivíduo tem que fazer refere-se ao tipo de sociedade em que viver. As pessoas podem não saber muito bem o que querem quando vão às compras, mas certamente têm consciência do que não querem. Para compreender as práticas de consumo temos que delinear as aversões estandardizadas – que são muito mais constantes e reveladoras que os desejos. Os artefactos são seleccionados para demonstrar a preferência. O penteado, os sapatos, a cosmética – assim como outras mercadorias - , assinalam afiliação cultural. (Nava:1997:73; Miller:1995; Bocock:1993; Douglas:1997).
Referências:
APADURAI, Arjun, 1986, The Social Life of Things, Cambridge University Press , Cambridge.
BOCOCK , Robert , 1993 , Consumption , Routledge , London & N. Y..
CARRIER, James, 1997 , Meanings of the Market , Berg , Oxford.
DOUGLAS, Mary, 1997, “In Defence of Shopping” In The Shopping Experience, Sage, London.
MILLER, Daniel, 1995, “ Consumption as the Vanguard of History” In Acknowledging Consumption , Routledge , London & N. Y..
MILLER, Daniel, 1997, Capitalism – An Ethnographic Aproach, Berg, Oxford , N. Y..
NAVA, Mica, 1997, “Modernity’s Disavowal : Women , the City and the Department Store” In The Shopping experience , Sage , London , T. O. , N. D..

Factores que Orientam a Selecção de um Bem de Consumo


- A construção das identidades pessoais através da escolha do objecto. O produto A é conotado com um grupo humano especifico (α) com uma identidade reconhecida. Optar por A é uma afirmação de pertença a α.
- A estética do objecto. Este factor divide-se em duas partes :
a) os aspectos formais e cromáticos (simetrias e cores), os quais dependem da estruturação visual da sociedade em causa.
b) A relação entre a aparência do objecto e os “modelos” visuais existentes (estilos, “modas”, etc).
- O “tipo” de objecto. Escolher um martelo é diferente de escolher um chocolate. Cada objecto existe socialmente através da noção que as pessoas têm dele. A noção é o objecto na sua forma social – a função que oferece, o contexto social no qual deve ser utilizado, o valor simbólico, etc.
- O custo monetário do objecto. “Custo”, “poupança” e “lucro” não são simples operações matemáticas. São noções culturais específicas dos grupos modernos. “Poupar” não é simplesmente gastar menos dinheiro. É uma noção que pode ser manipulada levando, muitas vezes, o consumidor a despender mais recursos para obter o objecto.
- O valor (importância) do objecto. Noções como “raridade”, “genuinidade” e “qualidade” podem aumentar ou diminuir a importância que um determinado grupo humano confere a um objecto.
- A ideia de necessidade. Porque é que um objecto é considerado necessário? As necessidades variam de grupo para grupo e enquadram-se nas práticas e valores específicos. Uma empresa pode “inventar” uma necessidade através da publicidade, mantendo desta forma uma relação constante do grupo humano com o produto.
- As marcas. Uma empresa procura, normalmente, associar à sua marca imagens e valores que aumentem a importância do produto. A marca, desta forma, transforma-se num símbolo e num elemento de evocação de aspectos como qualidade, genuinidade, poupança, etc. Frequentemente, as marcas procuram evocar formas de prazer e realização pessoal, mantendo uma relação constante com a manipulação do desejo.
- As rotinas dos consumidores (hábitos de consumo).
- O poder que o objecto oferece (liberdade, capacidade de usar a imaginação…). É que, tirando aquelas vezes em que compramos por rotina, nós procuramos o poder e o prazer (os dois principais princípios da motivação). Por vezes, o objecto actua como elemento de distinção, ou seja, faz sobressair (eleva) o proprietário em relação a outro grupo menos valorizado.

domingo, maio 09, 2010

Para quem é autodidacta

Se o estimado visitante é uma das muitas pessoas que procura cultivar o espírito por iniciativa própria, ou seja sem tutores nem percursos escolares ou académicos, este artigo é para si. A maioria dos autodidactas exerce a sua actividade de aprendizagem adquirindo livros sortidos e, eventualmente, pedindo informações às pessoas com quem se relaciona. Esta actividade é extremamente estimulante e confere liberdade a quem a pratica. Demasiada liberdade, como verá.
Ser responsável pela sua própria formação acarreta vários riscos. Pode ficar com lacunas importantes, adquirir conhecimento desactualizado, formular conceitos fantasistas, etc. O pior que lhe poderá acontecer é ter a sensação que possui um vasto conhecimento porque leu muitos livros ou porque tem a cabeça cheia de ideias. A vaidade intelectual, o chamado pedantismo, é dos piores inimigos de quem quer aprender.
A primeira coisa que deve ter em mente é a distinção entre aprender e armazenar conhecimentos. Se você quer ser um erudito, um armazém de “factos”, então este artigo não é para si. Há uma metodologia específica para adquirir Cultura Geral, muito útil a quem, por exemplo, deseja ganhar dinheiro em concursos televisivos.
Aprender é, acima de tudo, a transformação de um prisma. Quem aprende modifica a sua maneira de ver o mundo. Adquire novos esquemas interpretativos que lhe permitem decifrar o real de forma mais precisa. Por isso, aprender é tornar-se mais competente no processo de compreensão. Para aprender é necessário ler livros ou ir à escola? Claro que não. Desde que nascemos, tomamos contacto com o que nos rodeia e vamos adquirindo novas formas de classificar a realidade, interpretando-a.
Quando a aprendizagem foca o conjunto de conhecimentos instituídos disciplinarmente pelas Ciências e Humanidades, a forma como se transmite a informação tem metodologias próprias e obedece a critérios diferentes do senso comum. Não convém que seja uma aventura solitária, senão o explorador arrisca-se a ser engolido pela própria Natureza que deseja desbravar.
Sejamos optimistas e acreditemos que há navegadores solitários que conseguem chegar em segurança ao destino. Para ser um autodidacta bem-sucedido precisa de ter em conta vários aspectos.
Quando alguém entra numa livraria, a sua atenção recai sobre títulos e temas para os quais já está sensibilizado. No caso de um leigo que procura bibliografia sobre uma determinada matéria, os seus sentidos serão estimulados pelos assuntos que consegue compreender e, sobretudo, pelos conteúdos que concordam com a aprendizagem do senso comum, operada pelos meios de comunicação social, sociabilidade, etc. Temas que desconhece por completo não lhe abrem o apetite. Esta situação é uma das principais responsáveis pelas lacunas que a maioria dos autodidactas demonstra. O autodidacta só lê o que lhe apetece e não o que lhe seria mais útil.
Em segundo lugar temos o problema do método. A ordem de leitura não deve ser arbitrária e muito menos aleatória. Se você se interessa por um determinado autor, nunca pegue nas suas obras indiscriminadamente. Se o fizer, corre o risco de não compreender a evolução do pensamento desse autor e de não o conseguir enquadrar no contexto a que ele pertence. O ideal seria pedir ajuda a alguém que tem formação na área, no sentido de lhe indicar quais as obras que você deve ler e qual a ordem de leitura. Se não puder obter a tutória de um amigo ou conhecido, pegue numa enciclopédia e procure as entradas que dizem respeito ao tema. Regra geral, as enciclopédias oferecem uma visão panorâmica sobre os assuntos, que lhe permitirão inicialmente encarar a temática de forma abrangente e inserida num contexto, para que posteriormente possa ir estreitando as áreas de interesse. Portanto, um artigo numa enciclopédia pode ser uma introdução valiosa ao tema que pretende estudar e até um guia, uma vez que fornecem informações adicionais, como indicações para outras entradas ou sugestões de leitura.
O importante é começar com uma boa introdução, uma leitura que dê uma perspectiva geral do assunto e que o sensibilize para os diversos aspectos que constituem toda a complexidade da área em estudo. Um bom edifício dispõe sempre de uma antecâmara suficientemente ampla que permita aos recém-chegados visualizar a estrutura interna do prédio e, com a devida sinalização, evita que os visitantes percorram caminhos errados.
Outro aspecto a ter em conta é a credibilidade das obras. Não é por estar numa livraria frequentada pelas elites que um livro adquire qualidade. Comece por folhear a obra e veja se está bem organizada. O índice consegue ser funcional, ou seja, ajudar o leitor a orientar-se no texto? O autor está bem referenciado? Consegue-se perceber quem é, o que fez para chegar àquela obra, que trabalho desenvolveu dentro da área disciplinar? As consultas citadas pelo autor estão bem referenciadas? Há anotações? Quem tem prática a escolher livros já conhece as características que dão credibilidade a uma edição. Todas se resumem a uma qualidade: rigor. Boas edições estão bem organizadas e pautam-se pelo rigor aos mais ínfimo pormenor. Fuja de livros com títulos sensacionalistas como «A História misteriosa de…» ou «Grande livro do…», que procuram chamar a atenção dos mais ignorantes.
Quando se trata de livros científicos, o rigor é ainda mais necessário. Não corra riscos. Procure alguém com formação científica na área e peça-lhe ajuda. A data da edição também é importante quando estamos a lidar com um domínio científico que está em acelerada actualização e cujos conhecimentos se tornam desactualizados rapidamente. Hoje em dia, quase todos os campos científicos estão em constante mutação e, por isso, o conhecimento que era aceite há 3 anos deixou de o ser ontem à tarde.
Nunca compre livros sobre assuntos muito diversos de uma assentada. Um livro não é comparável a um fruto. Por isso, adquirir bibliografia não é o mesmo que preparar uma salada de fruta. Concentrar a sua atenção em áreas muito distintas pode ser prejudicial até para a sua saúde mental. Não estou a brincar. A nossa mente é um engenho de produzir analogias . Se você ler agora um livro sobre a organização social das abelhas e logo a seguir outro sobre a vida de Dostoievski, a sua mente irá necessariamente relacionar informação proveniente das duas obras. O resultado é o que acontece a muitos autodidactas: “descobrem” que têm teorias absolutamente revolucionárias, capazes de mudar o mundo. Outro dos “sintomas” característicos manifesta-se pelo carácter fragmentário do conhecimento. É vê-los nos cafés a debaterem com os amigos, saltitando de assunto em assunto, com argumentos de 15 segundos. Tornam-se incapazes de desenvolver um argumento, mas muito populares em tertúlias ou conversas de café. O problema da “Cultura Geral” é que se manifesta sabendo um pouco de tudo. Só que na maioria das vezes, o pouco é mesmo muito pouco. Eu chamo a isto “o intelecto fragmentado do autodidacta”.
Não queremos que a nossa mente seja uma manta de retalhos, mas sim um instrumento cada vez mais aperfeiçoado e capaz de interpretar a realidade.
Ponha à prova os seus conhecimentos. Desenvolva um argumento e coloque-o perante uma comunidade que se dedica a estudar o mesmo assunto. Os outros membros indicar-lhe-ão os erros de estudo que eventualmente terá cometido e colocá-lo-ão perante argumentos que contradizem o seu. O valor de uma teoria mede-se pela capacidade de sobrevivência perante a crítica. Estudar em comunidade também lhe permitirá beneficiar da ajuda de terceiros. As comunidades de conhecimento servem para que os membros se ajudem mutuamente.
Nunca tema as críticas. São elas que o ajudarão a evoluir. Não procure elogios. O ego e o conhecimento são inimigos radicais. A vaidade levá-lo-à à ilusão do saber, à cegueira do diletante.
O estimado visitante não quer ser, de certeza, como uma personagem de Sartre da obra A Náusea. O Autodidacta de Sartre pretendia ler os livros todos que havia numa biblioteca pública, por ordem alfabética...