quarta-feira, abril 10, 2013

O (Des)acordo Ortográfico

Reproduzo aqui um artigo do escritor Fernando Cardoso, publicado a 4 de Outubro de 2010, na revista online Livros e Leituras. Continua tão actual como no dia em que foi escrito.

"Acordo ortográfico revelou-se mais político do que linguístico" 

 

«Às hodiernas sociedades colocam-se questões de extrema complexidade relativamente às quais é possível elencar poderosos e argutos argumentos quer a favor de uma determinada orientação quer em defesa da posição oposta. Basta ter presente os inúmeros e rigorosos debates realizados e os rios de tinta consumidos acerca de temas como o aborto, o casamento entre pessoas do mesmo sexo, a eutanásia, a clonagem, o testamento vital, etc., etc…


O tema, objecto do presente artigo, é também ele genitor de enorme controvérsia. Com efeito, há quem defenda, de forma entusiasta, o Acordo Ortográfico e quem, por seu turno, o rejeite acerrimamente.


Vejamos, muito sucintamente, quais os principais argumentos invocados pelos que defendem o Acordo Ortográfico: 1º Assegurar a unidade da língua portuguesa entre todos os países que a têm como oficial com o objectivo de a fortalecer; 2.º Simplificar a escrita; 3.º Contribuir para a difusão internacional do português.


No que concerne ao 1º argumento, diremos que tal ilação é inverídica, porquanto a projecção de uma língua não depende de uma união ortográfica, mas de muitos factores. Basta ter presente que o inglês ostenta variadas divergências quer gráficas quer não-gráficas entre os países onde é falado, o que não obstou a que se tornasse, de forma natural e não espartilhada (o que esperanto, em vão, tentou) a língua internacional por excelência.


No que tange ao 2º argumento, há que convir que a utilização de duplas ou múltiplas grafias possíveis no interior de cada país, que o Acordo Ortográfico incongruentemente permite, em vez de simplificar, dá lugar ao livre arbítrio por parte de cada cidadão na escolha da grafia, pondo em causa o próprio conceito normativo de ortografia.


Direi, por outras palavras, que o Acordo Ortográfico visa a uniformidade ou unificação da grafia na língua portuguesa e, simultânea e incoerentemente, viabiliza a sua diversidade no seio de cada país.


Relativamente ao 3º argumento a favor do Acordo Ortográfico, há que reconhecer que não é a existência de divergências ortográficas que impedem a sua expansão.


Há, outrossim, que reconhecer que o gérmen do Acordo in causa revelou-se mais político do que linguístico, tendo-se manifestado interesses empresariais brasileiros, nomeadamente no domínio do mercado editorial da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa.


Mas uma coisa é certa: não é com a unidade da ortografia que o Brasil e os restantes países da CPLP passam a adquirir maior número de publicações a Portugal. E acresce que, com o Acordo Ortográfico, as editoras portuguesas que já se encontram numa situação de extrema fragilidade, confrontar-se-ão com as suas publicações “desactualizadas”.


Censuram os apologistas do Acordo Ortográfico que não entendem os opositores, porquanto a grafia da língua portuguesa tem evoluído. Mas tal argumento é inconsistente: na realidade, a língua portuguesa tem evoluído ao longo da sua existência, mas paulatinamente e por razões internas ― verdadeira evolução! ―, e não imposta do exterior, como ora se pretende.»