segunda-feira, junho 07, 2010

Consumo e Suas Conotações

Uma forma simples de definir o consumo pode ser esta: a utilização de um recurso que não foi produzido por nós. Esta definição reflecte claramente a separação de duas esferas – a da produção de um determinado artefacto e a da sua apropriação.
O consumo enquanto conceito é uma invenção da Economia. Pelo menos nos últimos cem anos, esta ciência tem invadido a nossa forma de conceber o mundo. Expressões correntes como “produção em massa”, “oferta e procura”, “gestão de recursos” são alguns exemplos de como a cultura da Economia penetrou no quotidiano das sociedades ‘ocidentais’. A nossa forma de pensar foi, ao longo do tempo, adquirindo os contornos da ciência económica. De tal forma que esta gramática constituiu-se numa visão do mundo.
Um dos conceitos mais fortes com que a Economia povoou o nosso pensamento foi o de mercado ( livre). Este conceito constitui-se num modelo que é utilizado para pensar a realidade, definir estratégias de acção e gerar ideologias. Trata-se de um modelo que reside em certas assunções. Talvez a mais básica seja a de que o mundo é constituído por indivíduos livres. A crença que esses indivíduos detêm uma espécie de livre arbítrio significa que eles são a única fonte e os juízes dos seus desejos, e que esses indivíduos não estão sujeitos a constrangimentos para além daqueles que aceitam voluntariamente. Não há, consequentemente, nenhuma estrutura imperativa além do indivíduo, nenhuma grelha moral operativa que seja definitiva. Associado a este individualismo está a assunção de que as razões que levam as pessoas a desejar isto ou aquilo são irrelevantes. Tudo o que interessa é que elas desejam, com o corolário que deviam satisfazer esse desejo caso possam. A outra assunção chave é que as pessoas são pragmaticamente racionais. Essencialmente isto quer dizer que elas querem mais por menos.
O modelo descreve um mundo que consiste apenas em compradores e vendedores. Estes podem ser indivíduos ou organizações, e um actor que é comprador a dada altura pode ser vendedor noutra. Compradores e vendedores: ambos querem mais por menos, de tal forma que o conflito entre eles é inevitável. O comprador quer despender o mínimo de capital por um artigo e o vendedor quer cobrar o máximo de dinheiro por ele.
Uma das razões para que o modelo tenha a força e a capacidade de atracção que tem é o facto de estar enraizado no que está construído como a natureza humana fundamental. Seria, com efeito, o que as pessoas fariam espontaneamente caso fossem deixadas ao acaso, se a sua propensão para comercializar, trocar e cambiar não fosse constrangida. Estando alicerçado sobre uma concepção de natureza humana fundamental, o mercado pode ser utilizado para exprimir uma variedade de valores e pressupostos, muitos dos quais ajudam a explicar a atracção populista da ideia de Mercado Livre. Por exemplo, diz-se que o Mercado é uma protecção contra um Estado intruso e que, portanto, é o garante da liberdade pessoal. Diz-se também que permite que os compradores disponham de maior utilidade e satisfação do que teriam doutra forma. É uma fonte de eficiência, assegurando uma alocação de recursos mais racional. É o mais certo motor do crescimento económico e da prosperidade pessoal. Por detrás destas ideias está a ligação entre o Mercado e o ocidente liberal capitalista, o local com maior liberdade e riqueza que existe.
Importa salientar que conceitos como consumo, consumidor, mercado, aquisição, remetem para uma lógica economicista. Contra esta corrente, as ciências sociais têm procurado dar explicações para uma nova arena de relações sociais, onde se tecem identidades e sistemas de valor que contrariam a ideia de absoluta liberdade e racionalidade do consumidor da Economia. O que está em jogo é muito mais do que a lei da oferta e da procura. São os significados e os valores sociais – muitas vezes contraditórios – imbuídos na forma como nos relacionamos com os objectos que não produzimos. Quero dizer que o consumo, ao contrário de outros sistemas de intercâmbio de objectos, se define na sua natureza pela existência de um separação entre produtores e utilizadores. Uma pessoa consome porque apropria um objecto que não produziu (Carrier:1997).
Na nossa sociedade subsistem vários mitos sobre consumo. Um deles opõe a genuinidade das relações humanas ao materialismo dos bens de consumo. Este mito compreende as seguintes asserções: o consumo é baseado no materialismo como um desejo não razoável de bens; o consumo opõe-se à sociabilidade já que é baseado num interesse em objectos que substitui o interesse prévio pelas pessoas. Estamos cada vez mais dominados pelo mundo das compras e, como tal, diminuídos na nossa humanidade. Interessa aqui salientar que, tanto os grupos étnicos como as mercadorias devem ser compreendidas como objectificações utilizadas para criar e explorar projectos de valor. Como tal, relacionam-se com aspectos ou imagens ideais da pessoa humana. O que deve ser rejeitado é o argumento de alguns autores que debatem o pós-modernismo o qual aponta para a existência de um discurso sobre a autenticidade das pessoas, sendo este reduzido pelo campo não-autêntico das mercadorias. (Miller:1997). Os objectos, tal como as pessoas, têm histórias de vida. Nascem para uma comunidade e ao longo do tempo e vão adquirindo identidades que se transformam. Quando adquirem o estatuto de mercadorias o carácter dinâmico do que representam continua a subsistir. As mercadorias são geralmente vistas como representações materiais típicas do modo de produção capitalista. Na verdade, os objectos de consumo têm vidas sociais. A mercadoria (como conceito) é um estado no qual as coisas podem entrar e sair. Os objectos “candidatam-se” ao estado de mercadoria e isto refere-se aos padrões e critérios (simbólicos, classificativos e morais) que definem a capacidade das coisas serem trocadas em qualquer contexto social e histórico particular. As mercadorias representam formas sociais e distribuições de conhecimento bastante complexas. Em primeiro lugar, tal conhecimento pode ser visto de duas perspectivas: o conhecimento técnico, social e estético que existe na produção do objecto; e, por outro lado, o conhecimento que reside na apropriação da mercadoria através do consumo. O conhecimento de produção que é registado num objecto durante a sua realização é bastante diferente do conhecimento de consumo que dele é traduzido. As duas leituras irão divergir proporcionadamente à medida que as distâncias sociais, espaciais e temporais entre produtores e consumidores aumentam (Appadurai:1986).
Nas primeiras fases do capitalismo, o trabalho (assalariado) formava o corpo central do senso de identidade para a maioria das pessoas. Actualmente, são as mercadorias e os padrões domésticos de consumo que jogam um papel importante na construção social e cultural. É cada vez mais no conjunto das mercadorias trazidas à vida pelas práticas de consumo que objectivações morais, cosmológicas e ideológicas são construídas para criar as imagens pelas quais nós compreendemos quem somos, quem fomos e quem seremos ou deveremos ser no futuro. Uma identidade construída através do consumo oferece muito mais poder e é consideravelmente mais controlável do que uma identidade dependente da sua colocação dentro de sistemas de produção.
Temos que deixar de pensar o consumo como uma manifestação de escolhas individuais. A decisão básica que um indivíduo tem que fazer refere-se ao tipo de sociedade em que viver. As pessoas podem não saber muito bem o que querem quando vão às compras, mas certamente têm consciência do que não querem. Para compreender as práticas de consumo temos que delinear as aversões estandardizadas – que são muito mais constantes e reveladoras que os desejos. Os artefactos são seleccionados para demonstrar a preferência. O penteado, os sapatos, a cosmética – assim como outras mercadorias - , assinalam afiliação cultural. (Nava:1997:73; Miller:1995; Bocock:1993; Douglas:1997).
Referências:
APADURAI, Arjun, 1986, The Social Life of Things, Cambridge University Press , Cambridge.
BOCOCK , Robert , 1993 , Consumption , Routledge , London & N. Y..
CARRIER, James, 1997 , Meanings of the Market , Berg , Oxford.
DOUGLAS, Mary, 1997, “In Defence of Shopping” In The Shopping Experience, Sage, London.
MILLER, Daniel, 1995, “ Consumption as the Vanguard of History” In Acknowledging Consumption , Routledge , London & N. Y..
MILLER, Daniel, 1997, Capitalism – An Ethnographic Aproach, Berg, Oxford , N. Y..
NAVA, Mica, 1997, “Modernity’s Disavowal : Women , the City and the Department Store” In The Shopping experience , Sage , London , T. O. , N. D..

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