quarta-feira, setembro 09, 2009

O Centro Comercial

Os centros comerciais são hoje em dia muito mais que espaços de compra e venda de produtos. Fazem parte da rotina diária de milhões de pessoas em todo o mundo e cumprem inúmeras funções, para além das comerciais. Em meados da década de oitenta, os empresários que projectaram estes edifícios começaram a introduzir actividades lúdicas e serviços que não apenas tornavam viável a permanência mais prolongada dos clientes mas que também os atraíam como forma de ocupação dos tempos livres. Em primeiro lugar é possível passar um dia inteiro no shopping sem que isso implique ficar privado de outras necessidades. O cliente tem ao seu dispor um amplo parque de estacionamento (por vezes gratuito) onde pode estacionar o seu meio de transporte por tempo indeterminado, zona de restauração com serviço permanente, locais de apoio às crianças (fraldário, sanitários especiais, actividades lúdicas, etc), locais de convívio (por vezes com espaços verdes), pontos de acesso à internet e um autêntico exército de funcionários preparados para satisfazer as mais diversas necessidades dos clientes (informações, segurança, apoio a deficientes, são alguns exemplos).
Estas são as condições de base que possibilitam aos utentes uma sensação de confiança e descontracção. Não é necessário sair do edifício para satisfazer necessidades que vão do carácter fisiológico até ao profissional. Hoje em dia é possível ir trabalhar para o centro comercial, bastando ao utente sentar-se diante de um computador. Mas se o shopping cumpre estas funções tão objectivas (comércio, trabalho e satisfação de necessidades básicas) porque é que cada vez mais pessoas o vêm como espaço de lazer? Por um lado, estes locais foram aos poucos concentrando no seu interior actividades comerciais tradicionalmente associadas à descontracção, diversão e convívio. O tradicional café com esplanada transferiu-se para o centro comercial, tal como os jardins, as arcadas de jogos e os parques de diversão. Por outro lado, o centro comercial transformou-se de forma a ser pouco perceptível a separação entre o lazer e o comércio. A arquitectura e a decoração são cada vez mais atraentes e menos formais, a distribuição espacial das diversas actividades procura diluir as diferenças institucionais que cada uma cumpre. Daí que todo o espaço do centro comercial seja, nos dias que correm, encarado como zona de lazer. Ao fim-de-semana é frequente vermos famílias a passar dias inteiros no shopping. Convivem, tomam todas as refeições, fazem compras, visitam exposições (de pintura, escultura, etc), apreciam as últimas novidades nas montras das lojas, vão ao cinema e recreiam-se no parque de diversões.
Todas as actividades são percepcionadas como lúdicas, mesmo que inicialmente tenham uma finalidade objectiva (comprar uma ferramenta, fazer transferências bancárias, mandar consertar um electrodoméstico, trabalhar através da internet, etc). Como o espaço do edifício foi projectado para transmitir um ambiente de lazer, tudo o que existe no seu interior adquire o mesmo carácter. Trata-se de um mecanismo cognitivo (estético) através do qual o pequeno espaço integrado (a loja) adquire o mesmo sentido do espaço mais vasto (o centro comercial). A reforçar este mecanismo podemos encontrar a atitude dos transeuntes. É raríssimo encontrarmos alguém nestes locais com uma indumentária formal, uma maneira de andar tensa ou com grandes formalidades. Regra geral, os utilizadores “passeiam” descontraidamente pelos corredores, deambulam muitas vezes com um rumo pouco definido enquanto apreciam a paisagem do centro. Durante os momentos de convívio, passados à esplanada de um café ou nos inúmeros bancos distribuídos pelos corredores, a conversa é serena, com temas triviais e cheia de boa disposição. O comportamento descontraído dos utentes, sendo reflexo do clima propiciado pelo espaço, acaba também por ser mais um processo indutor de descontracção e informalidade. Quando entramos no centro comercial somos envolvidos por uma arquitectura e decoração informais e confrontados com uma paisagem humana constituída por indivíduos relaxados e alegres. O resultado é sentirmo-nos da mesma forma, passamos a fazer parte do mesmo ambiente lúdico.
Nesta altura podemos concluir que os centros comerciais são espaços altamente eficazes na produção de estados de espírito descontraídos e bem-dispostos. Mas este é apenas o início do processo, a base fértil na qual se irão desenvolver teias de relações sociais. A desinibição dos utentes do shopping dá lugar a comportamentos criativos e de procura de prazer. Trata-se do aspecto mais importante deste texto, que irei delinear de seguida.
Quanto maior for a oferta de serviços, comerciais e lúdicos, maior é a atracção exercida sobre os consumidores. A diversidade providencia ao cliente uma sensação de poder, o poder de escolher. Este fenómeno por si só já é gerador de prazer. No entanto, a diversidade cria a percepção de um espaço sem limites, que não é monótono. Um grande shopping possibilita um número quase infinito de percursos. No mesmo espaço, cada visita oferece uma experiência singular, consoante o trajecto percorrido.
Apesar do número de lojas ser finito, há sempre remodelações. Há lojas que fecham e cedem o espaço a outras, contribuindo para quebrar a monotonia e renovar a paisagem do centro comercial.
A paisagem humana é sempre diferente. Em cada visita é possível apreciar novos transeuntes, que se passeiam pelos corredores e constituem um interesse visual muito particular. Consoante os seus interesses, o explorador urbano pode contemplar os dotes do sexo oposto, tomar consciência da indumentária característica de cada visitante, analisar os “tipos” corporais e sociais predominantes no espaço à sua volta, mas também se pode mostrar. Através do vestuário e da postura corporal, qualquer indivíduo consegue transmitir aos outros uma identidade particular. Por isso, o cliente habitual do centro comercial usa o espaço para se mostrar, para comunicar a sua identidade específica.
É nesta teia visual onde se cruzam valores de género, moda, atracção sexual, estatuto socioeconómico e outros, que se estabelecem relações sociais. Tudo num ambiente de informalidade. É possível “meter conversa” com outro transeunte ou com as pessoas que exercem a sua actividade profissional no interior do centro comercial. São relações “leves”, descontraídas, que podem durar alguns minutos ou vários anos. Também é comum transportar para o shopping relações sociais que nasceram noutros contextos. Uma vez que o centro comercial oferece um ambiente lúdico, os amigos, as famílias e os casais procuram estes espaços para ocupar os tempos livres fugindo aos ambientes formais e monótonos do seu quotidiano.
Por estas razões, um centro comercial é muito mais do que um simples aglomerado de espaços de transacção económica. É um universo próprio de relações sociais, dinâmico e sem forma (isto é: sem limites, inacabado). O centro comercial é uma narrativa aberta e, por isso, exerce fascínio sobre tanta gente. Qualquer pessoa pode escrever mais um capítulo na vida daquele espaço, ou criar a sua própria história. É um local para ver e ser visto, para ser produtor e produto da paisagem urbana.

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