terça-feira, fevereiro 07, 2006

A Fluidez das Identidades Contemporâneas

Segundo Zygmunt Bauman (2000), as relações de poder na fase da modernidade em que vivemos pautam-se pela evitação. Trata-se de uma tendência para rejeitar qualquer tipo de limitação ou circunscrição – territorial, de ordem e de consequências. Cada vez estou mais convencido que o momento que vivemos se caracteriza por uma cisão na noção de liberdade tal como foi definida por Sartre. Para Sartre a condição humana está sempre vinculada à necessidade de exercer escolhas. No entanto, para Sartre as opções que tomamos acarretam sempre consequências. Ora, a condição actual é pautada pela constante fuga às consequências. Ninguém actualmente se quer agarrar a um paradigma sólido, a um estilo de vida ou identidade fixos no tempo. O poder hoje em dia reside na capacidade de fugir aos efeitos de uma identidade ou de um paradigma. O conceito de Bauman é de ter em conta porque um dos processos de poder patentes na modernidade tem sido o encarceramento conceptual. O que quero dizer com isto é que a modernidade retirou poder a determinados grupos classificando-os, arrumando-os em gavetas dos vários sistemas de pensamento que foram surgindo. Categorizar é, muitas vezes, um processo de fixação identitária, de “pôr as pessoas no seu lugar”. Contudo, nos dias de hoje o poder individual é construído e mantido através da evasão aos sistemas de classificação. “Sair do lugar” é uma prática que confere poder aos agentes. É, portanto, natural que no domínio da criatividade individual as relações de poder também gozem do “grande escapismo”. Como um mestre da evasão, o sujeito procura libertar-se de uma grelha identitária fixista. A solidez dos esquemas conceptuais (solidez entendida como estabilidade) já não é bem-vinda. Queremos identidades fluidas que nos permitam fugir ao constrangimento das consequências. Como tal, o poder adquire-se e mantém-se pelo jogo de fintas que os agentes fazem em relação aos “sólidos” da modernidade. É uma condição que evita o compromisso.
Bauman diz que uma identidade moderna assenta sempre num projecto inacabado. Utilizando conceitos de Nietzsche, afirma que não se pode ser Mensch sem se aspirar ao Ubermensche. Isto quer dizer que uma identidade moderna faz-se, em grande medida, pela destruição do presente estável. Daí que as pessoas em geral tenham uma grande dificuldade em identificar-se com um esquema social consolidado. É uma espécie de identidade que se constitui pela construção de uma utopia individual. Tal utopia é perseguida mas que nunca se pretende acabada. Se existe alguma coisa que caracterize a condição moderna é a sensação de constante inconformismo com o presente. As pessoas vivem em função do que está para além.
A chamada ‘sociedade ocidental’ sofreu uma alteração gradual a nível das metanarrativas, fruto da crescente importância que o estudo das relações de poder adquiriu, sobretudo a partir dos anos sessenta. O ‘não querer oprimir’ levou à escalpelização exaustiva das relações de poder imbuídas no discurso. Como resultado, as grandes categorias começaram a ser encaradas com alguma desconfiança, como entidades conceptuais que absorviam a diversidade infinita das pequenas diferenças. O ser humano, hoje em dia, sente a presença do caos das pequenas narrativas sempre que se propõe analisar a realidade. Tudo é relativo e único. E como se isto não bastasse, tudo é impermanente. A realidade muda constantemente de forma não linear.
Se, por um lado, o pensamento contemporâneo se serve deste agnosticismo conceptual para evitar a opressão, por outro o relativismo serve uma lógica de poder inerente a esta fase da modernidade.
A famosa expressão “dissolver os sólidos”, cunhada pelos autores do Manifesto do Partido Comunista referia-se ao projecto de superação da história – a dissolução de tudo o que fosse resistente ao tempo. Pretendia-se com isto destronar o passado, sobretudo a ‘tradição’ (o conjunto de sedimentos e resíduos do passado no presente). Embarcámos nesta quimera não para nos livrarmos definitivamente dos sólidos, mas sim para abrir espaço novos e melhores sólidos, de preferência perfeitos.
Os tempos modernos encontraram os sólidos pré-modernos num estado avançado de desintegração. Um dos motivos mais fortes para a sua dissolução foi a vontade de descobrir e inventar novos sólidos. Sólidos que durassem, de confiança e que transformassem o mundo em algo previsível e controlável.
Tanto liberais como marxistas, os projectos de emancipação modernos procuram dirigir a humanidade em direcção a ideais de liberdade. Acontece que tais projectos, no seu desenvolvimento, acabam por dar primazia à esfera económica, separando-a dos restantes elementos do ‘real’.
Houve uma transformação a partir de uma concepção do eu, própria das relações de dádiva, em direcção a outra, própria das relações mercantis. O que acontecia no passado era que se pensava no eu enquanto situado, definido pelas relações em que existia. O eu era uma localização numa estrutura ou teia de relações. Consequentemente, os motivos das pessoas brotavam das suas localizações. Com esta compreensão do eu, os seres humanos identificavam-se mutuamente em termos das suas posições respectivas na grelha social, e cada um assumia que o outro fosse ‘sincero’ acerca de não ocultar a sua posição. Gradualmente, um ponto de vista diferente ganhou força. O eu passou a ser a consciência individual enquanto entidade autónoma e irredutível. Construir o eu como algo autónomo é assumir que é individual e autocontido. Consequentemente, o indivíduo tornou-se na única fonte válida de motivação. Através desta compreensão do eu, as pessoas identificam-se em termos das suas vontades individuais. Enquanto o ponto de vista antigo sobre o eu identifica os seres humanos em termos da sua localização numa teia de relações sociais, não nega que o eu é algo individual. Pode ser individual no sentido que cada pessoa é única. No entanto, não é individual no sentido de ser autocontido.
Carrier, na obra Virtualism – a New Political Economy (1998), introduz um conceito novo que serve para descrever a visão-do-mundo característica das sociedades ‘ocidentais’ contemporâneas. Virtualismo, diz ele, é pensar a realidade tendo como base cognitiva a gramática da Economia. Enquanto nos contextos pré-modernos o pensamento é estruturado pela teia de relações sociais que envolve cada um, nas sociedades modernas a Economia impôs a sua epistéme ao mundo, colonizando todas as esferas do social. Basta recordar que o conceito que temos de liberdade (entendida como individual) é deriva de um ideal americano de mercado. Com o crescimento do poder americano desde a Segunda Guerra Mundial ‘o Mercado’ tornou-se mais global. A política de governação americana ajudou a pressionar instituições por todo o mundo a conformarem-se ao seu modelo. O modelo cultural do Mercado reside em certas assunções. Talvez a mais básica dessas assunções é a de que o mundo é constituído por indivíduos livres. A crença que esses indivíduos são livres significa que eles são a única fonte e os juizes dos seus desejos, e que esses indivíduos não estão sujeitos a constrangimentos para além daqueles que aceitam voluntariamente. Não há, consequentemente, nenhuma estrutura imperativa além do indivíduo, nenhuma grelha moral operativa que seja definitiva. Associado a este individualismo está a assunção de que as razões que levam as pessoas a desejar isto ou aquilo são irrelevantes. Tudo o que interessa é que elas desejam, com o corolário que deviam satisfazer esse desejo caso possam. A outra assunção chave é que as pessoas são pragmaticamente racionais. Essencialmente isto quer dizer que elas querem mais por menos.
Porque é que Carrier chama a esta visão do mundo virtualismo? Porque ela deriva não das relações sociais que acolhem cada um mas sim de um modelo colonizador, ‘artificial’ na sua origem. O modelo advém da gramática da Economia tal como a realidade virtual é gerada nas entranhas metálicas de um computador. O modelo e a realidade virtual têm origem em mundos à parte da esfera das relações sociais.
Se bem que a análise de Carrier esteja imbuída de um platonismo pessimista, por dividir as coisas entre um mundo Real (verdadeiro) e outro Ideal (artificial e distópico), tem a vantagem de nos chamar à atenção no que diz respeito à natureza dos ideais modernos e suas repercussões nas relações de poder.
Regressemos ao problema de Bauman. Tudo o que é sólido mete medo. Isto porque hoje em dia o poder mede-se pela capacidade de mudança. Daí que decisões firmes, que acarretam consequências na posição que ocupamos na estrutura social, sejam de evitar. Há uma espécie de ruptura no conceito sartriano de liberdade. Para Jean-Paul Sartre o ser humano é intrinsecamente livre. Somos obrigados a fazer opções constantemente e a arcar com as consequências das nossas escolhas. Portanto, a capacidade de escolher e a consequência fazem parte de uma unidade inerente à liberdade humana. O poder de fazer opções é, em termos de valor, igual á liberdade de sofrer as consequências destas. Acontece que a modernidade separou estes dois termos. Para não abdicarmos da nossa flexibilidade, as decisões não podem ter consequências sólidas, isto é, que resistem à passagem do tempo. E isto é válido tanto para as opções da nossa vida individual, como para decisões de carácter nacional, etc. Recordo que as guerras hoje em dia são feitas “sem vítimas”. Do ‘lado de cá’ (América e aliados) ninguém morre uma vez que tudo é feito através dos bombardeamentos da aviação. Não há soldados no terreno (e quando há não os mostram). Como os bombardeamentos são ‘cirúrgicos’ (é o que nos dizem no telejornal) também não há vítimas humanas do ‘lado de lá’. Portanto, hoje em dia, os americanos e aliados só fazem guerras virtuais. Ser responsável por uma decisão que acarrete consequências é a pior coisa que nos pode acontecer. No século XXI, uma guerra tipo Vietname (com o consequente síndroma do ‘bodybag’) atiraria o político mais carismático para os confins do universo social.
Quando tratamos de práticas discursivas a realidade não é muito diferente. Não convém aderir a paradigmas sólidos, quanto mais se defender uma tese maior é a probabilidade de nos afundarmos com ela.

Referências : BAUMAN, Zygmunt, 2000, Liquid Modernity, Polity Press.
CARRIER, James, 1998, Virtualism: a new political economy, Berg

Sem comentários: