domingo, maio 14, 2006

Hackers e a Política do Medo


Nas sociedades ocidentais contemporâneas, dominadas pelas tecnologias de informação, a expressão “hacker” é de uso corrente. Ela surge, na maioria das vezes, associada à ideia de crime e de perícia no âmbito das novas tecnologias. A imagem do hacker mais comum foi construída pela “fear factory” imbuída nos meios de comunicação de massas. Todos os dias somos bombardeados pela imprensa (televisiva, escrita e online) com notícias de atentados terroristas, epidemias, catástrofes naturais, crimes da mais diversa natureza, e um rol de cenários distópicos que provoca em nós um medo constante e inconsciente. É a este processo que eu chamo fear factory: um engenho cujo propósito é o de provocar o medo generalizado.
O temor (e por vezes o pânico) teve ao longo da história um papel determinante na estruturação das sociedades – ocidentais e não só. Como instrumento político serviu ora para manter o status quo, ora para provocar o ímpeto das massas em direcção a um objectivo pré-determinado. O medo foi, e continua a ser, um meio poderosíssimo de controlo comportamental.
Uma forma encontrada pelo capitalismo global para encontrar novos mercados, produzir consumidores e concentrar o poder económico em pequenos grupos foi a de gerar “guerras imaginárias”. Falo dos cenários de violência com que todos os dias somos confrontados através dos meios de comunicação. Com a expressão “imaginárias” não quero dizer que não se baseiem em fenómenos ‘reais’. No entanto, há que ter em conta que o jornalismo é um processo de selecção da realidade. Um jornalista, quando confrontado com uma enorme diversidade de situações, tem que decidir quais são “notícias”. Tem que extrair um acontecimento específico do emaranhado de situações caóticas que compõem a realidade, separar o que é relevante do que é banal. Para o conseguir, projecta-se na mente do público, indo à procura do que poderá suscitar interesse. O leitor tem memória, por exemplo, de algum acontecimento feliz passado na Palestina? Provavelmente, não. Isto porque a realidade palestiniana foi filtrada para que só tivéssemos acesso ao terror e infortúnio. Para além deste processo de escolha, os acontecimentos adquirem a forma da própria cultura jornalística quando são narrados. Ler uma notícia ou ver uma reportagem na televisão sobre os atentados do 11 de Setembro não é a mesma coisa que estar lá. Isto porque a notícia é uma narrativa que obedece a critérios por vezes semelhantes ao do texto literário. A notícia tem uma introdução, um desenvolvimento e uma conclusão. As pessoas envolvidas são-nos apresentadas como “personagens”. Pode-se sempre encontrar uma alegoria (uma “lição” ou um juízo moral) e preocupações evocativas (o jornalista pretende que o público “sinta”, partilhe das mesmas emoções que ele teve quando presenciou o fenómeno). Devo salientar que as notícias são narrativas particulares. Particulares porque, apesar de se tratarem de “histórias” contadas a um público que não presenciou os acontecimentos, elas são percepcionadas através de um prisma cultural muito específico: a noção de realismo. Nós acreditamos que uma notícia é a transmissão pura de uma realidade. Isto acontece porque ao longo da nossa estruturação cognitiva “aprendemos” a distinguir as narrativas apresentadas num telejornal das narrativas “ficcionais” (literatura, filmes, etc). Portanto, o reconhecimento da realidade, no que toca às narrativas, baseia-se no local onde esta é apresentada e no formato da apresentação (por exemplo, todos estamos habituados às imagens “aos solavancos” das reportagens e dos documentários; transmitem uma sensação de realidade em estado bruto).
Um dos problemas provocados pelo “carácter literário” das notícias é o facto deste dar origem a essências. Pode fazer com que uma dada pessoa, um grupo de pessoas ou um dado fenómeno se associem permanentemente a um atributo (ou conjunto de atributos). Um exemplo desta associação é a criação de estereótipos. Quando alguém fala em islamismo não nos vem logo à cabeça a ideia de terrorismo? A expressão “Casa Pia” não passou a ser sinónimo de pedofilia? Para criar um estereótipo, por vezes, basta que um acontecimento (real ou não) passe a ser notícia.
É aqui que entra a “fear factory”. Da mesma forma que alguns progenitores menos esclarecidos incutem nas suas crianças o medo do Papão, os meios de comunicação têm criado estereótipos cuja única função é a de assustar as massas. A Fábrica do Medo é o verdadeiro terrorismo, a política do terror. A forma como as pessoas se organizam socialmente e as relações de poder no seio de uma sociedade são estruturadas pelo medo provocado pelos estereótipos que as massas interiorizaram. O medo faz também com que os seres humanos reprimam as suas pulsões afectivas, restando ao indivíduo seguir apenas motivações relacionadas com a sede de poder por um lado, e, por outro, procurar colmatar a ausência de amor pela construção de um eu (ou self) centrado em si mesmo. A bulimia, o consumismo exagerado e a competição desenfreada são corolários patológicos de um eu faminto que procura captar tudo o que o rodeia. Uma personalidade self-centered é característica das crianças nos primeiros estágios de desenvolvimento. No entanto, esta estrutura pessoal mantém-se, na maioria dos casos, ao longo da vida dos indivíduos nas sociedades ocidentais. O sujeito individual não amadurece porque o medo não o deixa “abrir-se” aos outros. Como tal, limita-se a envelhecer, chegando ao final da vida com o mesmo temperamento adolescente dos 14 anos mas com muitas mais frustrações.
O hacker é um dos estereótipos que povoam a nossa consciência. É um conceito nascido da política do medo. Para a maioria das pessoas, hacker é alguém que conhece segredos da informática (uma espécie de alquimista das tecnologias de informação) e que os usa com fins maléficos. Invasões de computadores, destruição de páginas web, fraudes bancárias e criação de vírus são todos fenómenos associados na imaginação popular à palavra hacker. Um hacker é um tipo de génio do mal com imenso poder. É graças a este conceito que milhares de jovens (ou milhões) se sentem tentados a aderir aos grupos (ou subculturas) conotados com o fenómeno hacker. Em primeiro lugar, o simples facto de poderem vir a pertencer a uma comunidade que foge aos parâmetros das instituições hegemónicas já é motivo de atracção e fascínio. O jovem procura aderir a este tipo de grupos de forma a moldar a sua identidade pessoal. Pretendendo afirmar a sua identidade, o jovem procura um grupo onde possa sentir-se diferente da maioria. Ninguém quer ser mais uma ovelha no rebanho… Em segundo lugar, as pessoas querem ir ao encontro de conhecimentos que lhes confiram poder. A atracção que o poder exerce é intrínseca à natureza humana. Neste caso, tratamos da capacidade de transgressão, a expressão por excelência do poder, que confere ao sujeito individual uma sensação de liberdade (fuga aos constrangimentos impostos à maioria). O problema surge é quando essa atracção se torna totalitária, ou seja, quando “substitui” (ou procura substituir) outros interesses que requerem um amadurecimento da estrutura emocional do indivíduo (o estabelecimento e manutenção de relações sociais, por exemplo).
O conceito de hacker está longe de se esgotar nesta visão de “alquimista do ciberespaço” (ou génio do mal). A realidade é que existem inúmeras comunidades do ciberespaço onde a expressão adquiriu outros contornos.
Eu tenho reparado que muita gente associa o Linux ao fenómeno hacker. Esta analogia tem vários fundamentos e nenhum está relacionado com os crimes informáticos. Vejamos:
1 - Nas sociedades de linux, “hacker” quer simplesmente dizer “programador; alguém que colabora no desenvolvimento de software”. Estes “profissionais” reagem com veemência a que se chame “hackers” aos piratas. «Um hacker é um ‘especialista’ que tem como objectivos desenvolver as ciências computacionais para o bem de todos; quem se dedica à pirataria e às invasões deve ser chamado ‘cracker’».
2 - A maioria das distribuições de linux (para utilizadores) é gratuita. O desenvolvimento deste software não tem, na generalidade dos casos, objectivos comerciais. Existe aqui uma consciência política nem sempre explícita. O linux tem uma identidade própria construída em grande medida por oposição a uma outra: a da Microsoft. A empresa do Sr. Bill Gates é conotada com os valores e lógica do capitalismo. Neste quadro, o “software Windows” causa aversão a quem se quer distanciar destes valores. Neste jogo de juízos, o linux afirma-se através de uma identidade “comunitária”, não é propriedade de ninguém, é feito por todos e para todos. Diversos grupos arrastam (muitas vezes sem o saberem) valores do comunismo para a esfera das tecnologias de informação. A oposição entre Windows e Linux reflecte a dicotomia “propriedade privada” versus socialismo. Este dualismo está presente logo nas descrições relativas à produção dos códigos-fonte dos programas (programação). Na obra The Cathedral and the Bazaar, o autor (Eric Raymond), para citar um exemplo, expõe dois modelos: o modelo da catedral, no qual o código do software está restringido a um grupo exclusivo de programadores; e o modelo do bazar, segundo o qual o código é desenvolvido na Internet à vista de toda a gente. Neste contexto dualista, as identidades “hacker” e linux casam-se abençoadas pelos valores que se opõem às hegemonias e à propriedade privada.
3 - As distribuições de linux oferecem aos utilizadores e programadores uma liberdade que não está patente noutros sistemas operativos. Uma pessoa pode modificar programas, copiá-los, distribui-los, até pode “montar” o seu próprio sistema operativo instalando os componentes que pretende. Em linux o utilizador chega a ter a opção de transformar o próprio núcleo do sistema (kernel). A única coisa que não pode fazer é vender o software. Esta liberdade (de exercer a criatividade) conferida pelo linux é muito estimada pelos grupos hacker, que a converteram em ideologia. Os hackers querem ser produtores (ter a liberdade de criar).
Descrevi aqui dois grandes modelos conceptuais associados à expressão “hacker”. O mais comum (disseminado na cultura popular) é produto da política do medo patente nos meios de comunicação social. Os utilizadores sentem que existe uma ameaça e adoptam uma atitude defensiva, do tipo “estado de sítio” permanente. Esta postura evita que tomem posições críticas em relação à ordem estabelecida (a estrutura social e política que os enquadra) e, como tal, serve para perpetuar o status quo. Tem outro efeito, desta vez económico, que é o de manter a indústria de segurança informática (que produz antivírus, firewalls e toda a panóplia de mecanismos defensivos). O segundo modelo é mantido por algumas elites que adoptaram uma postura de “liberdade e criatividade” muito semelhante à que reina na arte contemporânea. Nesta situação, o “hacker” é um indivíduo que domina várias técnicas, procura a originalidade e a experimentação e não se vende aos interesses consumistas.
Não é de estranhar que cada um destes modelos tenha surgido em classes sociais diferentes. A repressão foi sempre exercida com maior influência nas classes populares através da cultura de massas. Por outro lado, as ideologias de resistência nasceram e foram mantidas, ao longo da história, no seio de elites intelectuais. Quem pode, resiste. Quem não pode, esconde-se.

2 comentários:

Daniel G. disse...

É pena que tão poucas pessoas tenham consciência da forma como são manipuladas através dos meios de comunicação social.

Anónimo disse...

Muito bom!
Mas a realidade é que todos nós, mais tarde ou mais cedo acabamos por cair na "Fear Factory" e manipulados consciente ou inconscientemente!
Em relação aos hackers, além do descrito e muito bem, é importante esclarecer que começam a existir (há alguns tempos) designações que diferenciam os "bons" dos "maus". Pelo menos ficar escrito, pois há muitos utilizadores de informática que desconhecem essas designações, sendo manipulados mais facilmente pelos meios de comunicação social.