sexta-feira, maio 26, 2006

A Crise Nacional


É comummente aceite que Portugal está em crise. Fala-se, sobretudo, da crise económica, uma espécie de objectificação de um conjunto de problemas que afectam o estado português e que, para a maioria das pessoas, se traduz num único predicamento que as afecta diariamente: a falta de dinheiro. Gostaria aqui de distinguir dois tópicos:
- O primeiro é o conceito cultural de crise. A “crise” é um artefacto, ou seja, trata-se de um objecto criado por uma cultura, ainda que seja imaterial. Existe num nível ideológico. Tem propriedades que lhe são atribuídas e mantém relações com um grupo social. É um objecto “espectral” (perdoem-me esta expressão que parece saída do esoterismo), uma vez que parece emanar do próprio grupo que afecta, como se tratasse de um fluxo vivo cuja principal característica é prender-nos a todos a uma condição sombria. A crise é uma espécie de assombração que nós próprios geramos.
- “Crise” é uma palavra de origem grega (“krino”, peneirar). Neste segundo tópico, deve entender a expressão no seu sentido de questionamento, problematização. Criticar é levantar questões sobre um determinado assunto e, por vezes, por em causa um paradigma.
Em relação ao primeiro tópico, pode dizer-se que “a crise” está bastante enraizada no pensamento português, uma vez que a ela atribuímos muitos fenómenos e é aceite por uma vasta maioria como uma entidade real. Quanto ao segundo, não posso afirmar com tanta firmeza que o povo português seja “crítico”. É sobre esta segunda abordagem que se debruça o presente texto.
As coisas não correm bem no nosso país. É este o mote para um número incontável de conversas e desabafos. Os principais “ataques” são dirigidos, sobretudo, à classe política. Seguem-se as classes profissionais ligadas à saúde e à educação. São-lhes atribuídos os seguintes defeitos: má gestão dos serviços que oferecem, oportunismo, incapacidade para desempenhar as funções que exercem e, em casos extremos, a corrupção. Não é a minha intenção negar nem confirmar tais considerações na análise que aqui teço, mas sim demonstrar que a origem dos problemas que nos afectam a todos não está circunscrita a alguns sectores da sociedade portuguesa.
No meu entender, a raiz dos problemas nacionais é cultural. Importa aqui salientar que a noção de cultura empregue neste texto aponta para o universo de classificações que estruturam a experiência humana. Distancio-me, como tal, da noção de cultura entendida como “Belas Artes”ou outras actividades conotadas com as “elites intelectuais”. Cultura tem a ver com o problema do sentido, com a forma como cada grupo classifica e entende o seu próprio mundo. É uma “estrutura mental” (e simultaneamente corporal) que organiza todas as acções (das mais banais às mais criativas), conscientes ou não. É precisamente nesta dimensão que está a origem dos males que todos, aparentemente, conhecemos tão bem. O subdesenvolvimento está dentro de nós e o mau funcionamento das instituições resulta do prisma que usamos para ver a realidade.
O verdadeiro problema nacional está no nosso ser. Somos um grande grupo de aldeões, com horizontes tão estreitos quão limitadas são as nossas ambições. O nosso pensamento é cartesiano e hermético, separamos e mantemos a realidade em unidades fechadas. A interdisciplinaridade é um mito nas universidades, nas mais diversas instituições, e no pensamento do lusitano mais comum. O português tem uma extrema dificuldade em dar sentido a aspectos complexos e, sobretudo, multidimensionais. Quer cada coisa no seu lugar e a criatividade poética é remetida para a esfera do lúdico.
Somos extremamente catárticos e pouco críticos. Estamos especialmente interessados em “descarregar” os nossos sentimentos mais básicos (ódio, inveja, vingança,etc) sob a forma de escândalo grupal. Evitamos uma análise objectiva e serena que conduza a projectos pessoais de cidadania. Não acreditamos na democracia nem nas suas instituições. Os objectivos alcançam-se através da “manha” e das amizades que cada um tem. Temos medo que o sistema nos caia em cima. Por “sistema” entenda-se “o conjunto de pessoas às quais é reconhecida uma autoridade e que têm meios para exercer violência (‘tramar os outros’)”. Quanto mais abstracto for o “sistema” mais medo exerce sobre as massas. O português sobrevaloriza a autoridade, deseja-a para que possa abusar dela e teme-a quando sente que outro a tem. Toda a gente quer ser chefe ou presidente, por vias formais ou simplesmente pelo poder que o protagonismo oferece.
Em Portugal não gostamos da diferença mas toda a gente se considera tolerante. Somos simplesmente paternalistas em relação a grupos que já têm um estatuto. «Ninguém é racista»! No entanto, o repúdio por outras formas de opressão não faz parte da agenda politicamente correcta dos portugueses. Desde que a vítima seja branca o ataque é legítimo. A personalidade de cada um (maneira de ser), a ausência de sinais exteriores de poder (dinheiro, conhecimentos, cargos, etc) e a aparência são alguns dos veículos mais usados para oprimir. E a opressão é epidémica…
Eu penso que, na sua maioria, os portugueses sofrem de um tipo muito específico de complexo de inferioridade. A auto-estima da gente lusitana está dependente da dimensão da sua “aldeia”. Para se sentir bem com ele próprio, o portuga tem que coexistir num espaço restrito com os seus iguais. O seu amor-próprio é muito volátil em zonas abertas. Daí que seja tão invejoso. Ora, a inveja mais não é do que a sensação de que não se está à altura de outra pessoa. Nós invejamos quem nos faz sentir mais pequenos. A cobardia é outra expressão deste complexo de inferioridade. Atacando os mais vulneráveis o português compensa, temporariamente, a sensação de impotência que o domina no dia-a-dia.
Todos os problemas atribuídos à “crise” e à “bandalheira” nascem precisamente da condição do ser português. Portugal funciona como uma aldeia porque é povoado por aldeões.
Delinearei, seguidamente, três exemplos que ilustram o meu argumento:
- O subdesenvolvimento económico. No nosso país a iniciativa empresarial é um bem escasso. Quem tem capital para investir procura o conforto e satisfazer ambições pequeno-burguesas ligadas ao estatuto. Os nossos cidadãos mais endinheirados preferem “investir” num Ferrari que cause inveja aos vizinhos do que em projectos que visem aumentar a qualidade dos seus produtos e, com isso, tornar a sua empresa mais competitiva. Além disso, preferem que os seus lucros provenham de “manobras” feitas ao estado (fugas ao fisco, subsídios…) do que serem eles a criar riqueza.
- As elevadas taxas de sinistralidade nas auto-estradas portuguesas. A deficiente cultura de cidadania (e de civismo) faz com que o automobilista dê largas ao seu egoísmo, desrespeitando as normas do código da estrada, as normas do bom senso e, sobretudo, a consideração pelos outros. Quando a autoridade policial está presente tudo muda de figura.
- Os maus-tratos infligidos às crianças. Todos nós conhecemos, graças aos holofotes da imprensa, diversos casos de pedofilia e de infanticídio, imbuídos de crueldade e perversão. Infelizmente, este tipo de violência não é exclusivo do nosso país. Nem eu pretendo debruçar-me sobre esta classe de criminosos. O problema português quanto ao desrespeito pelos direitos das crianças é outro. Regra geral, as gentes lusas não têm a menor aptidão para se relacionarem com os jovens. Os atentados à dignidade física, moral e psicológica enquadram-se no conceito de “educação” da plebe portuguesa. Todos os dias, pediatras, pedopsiquiatras, professores e educadores lidam com o calvário de milhares de crianças provocado pela estupidez e incúria de um povo que nunca amadurece, que se limita a envelhecer. Educar à boa maneira portuguesa é reprimir os comportamentos criativos, é mostrar o sofrimento e forçar a que este seja aceite como inerente à própria vida, é empurrar para os professores a responsabilidade total de uma formação intelectual e cívica… Ser pai (ou mãe) é convencer uma criança de que o mundo tem os horizontes televisivos, é usar o stress acumulado ao longo do dia para dar um valentes berros, umas estaladas sonoras, e desta forma mostrar quem manda. É assim que se faz um português: ensina-se a ter medo de quem tem mais poder, espartilham-se os horizontes e reduz-se a pó a auto estima do ser em desenvolvimento. A violência psicológica exercida sobre as crianças portuguesas é tremenda. Daí que muitas tenham dificuldade em estruturar as emoções e o pensamento. O insucesso escolar disseminado é a expressão mais visível deste problema.
É na relação entre pais e filhos que se mantém o subdesenvolvimento português. É a violência sobre as crianças que impede o desenvolvimento de cidadãos autónomos, ambiciosos e criativos. Daí que um Portugal melhor não seja um cenário realista, pelo menos a curto prazo. É provável que os jovens violentados do presente mantenham o ciclo de repressão, tornando-se nos agressores do futuro.
Torna-se necessário, nesta fase do argumento, perguntar: qual é o método mais adequado para superar a “crise nacional”? Como é que se muda a maneira de pensar de um povo? A via mais simplista, característica das ditaduras, é através de uma política do espírito. Todos os regimes de autoridade do século XX procuraram moldar as mentalidades, forçando um sistema de valores que procurasse legitimar o poder estabelecido. A censura dos meios de comunicação (ou “filtragem de conteúdos”), os programas leccionados nas instituições escolares e a propaganda governamental foram alguns dos principais instrumentos. Apesar destes meios de controlo do pensamento colectivo terem-se mostrado eficazes na manutenção do regime, nunca conseguiram criar um novo homem. Do regime soviético ao Reich nazi, do fascismo italiano ao comunismo chinês, os governos nunca conseguiram que a maioria da população adquirisse os contornos da sua visão antropológica. Foram capazes, isso sim, de aproveitar as pulsões e sentimentos populares a seu favor.
Uma vez que operar uma política do espírito é uma solução inviável (e que levanta diversos problemas éticos), urge procurar outros trajectos. Uma hipótese que eu coloco, completamente aberta à discussão, tem a ver com a indução da transformação social. Ou seja, uma maneira de modificar o espírito é alterar as condições de vida. Não me refiro a aumentos salariais ou outras medidas que visem acrescentar conforto ao quotidiano dos portugueses. Estou antes a pensar em alterações na estrutura do quotidiano e numa percepção diferente da realidade. Para que abandonem “a perspectiva do aldeão” os portugueses têm que ser impregnados com um senso de impermanência no seu dia-a-dia e entrar em contacto frequente com a alteridade real. O que é que isto quer dizer? Trata-se de operar uma ruptura nas rotinas das pessoas, forçá-las a sair do universo banal em que elas repousam. Fazer com que a transformação do seu modo de vida produza ao longo tempo a consciência de que nada é eterno nem imutável (a impermanência). Quando o meio circundante muda frequentemente as coisas (objectos materiais, estatutos, instituições, etc) começam a perder o valor, a deixar de ser sagradas. A única permanência passa a ser a condição humana. A forma de encarar o Homem (ou seja, a noção de pessoa) pode e deve ser enriquecida com o contacto frequente com o ‘exótico’, com aquele que é diferente. Não me refiro às “diferenças comuns”. A negritude e a homossexualidade já são banais. Não servem para alargar horizontes nem mexem com a nossa visão do mundo. Este país precisa de gente “estranha”, de pessoas que estimulem a nossa curiosidade e nos façam reflectir sobre as nossas próprias características. É necessário que o universo se torne mais complexo na cabeça dos portugueses.
Uma forma de dinamizar culturalmente o país, e de mobilizar os seus cidadãos, é dar-lhe um sonho. Um dos problemas que nos afectam e que contribui fortemente para o marasmo colectivo é a carência de um identidade nacional forte, viva no imaginário e nas emoções das pessoas. A falência do nosso patriotismo foi concomitante à degradação do Estado Novo. Durante o regime de Salazar, a estrutura política e o patriotismo eram um só. O revivalismo histórico, a concepção do império ultramarino, os símbolos nacionais e a política de unidade nacional formavam o tecido identitário do povo português. Portanto, o Estado Novo confundia-se com a identidade nacional. A impopularidade do regime fez com que as massas deixassem também de acreditar no seu país. Portugal era diferente porque tinha uma história única, com 800 anos; era diferente porque estava presente em quatro continentes; tinha uma missão no mundo: espalhar a sua cultura e “evangelizar” os povos indígenas. Este imaginário português foi sendo desvalorizado à medida que o Estado Novo avançava no seu crepúsculo. Mais tarde, o golpe de estado de 1974 veio agudizar a já débil identidade nacional. Rompeu completamente com os órgãos do regime e com a sua cultura. Os valores nacionalistas (ou patrióticos) foram esvaziados no seu conteúdo político, uma vez que os símbolos nacionais adquiriram uma conotação negativa, passaram a estar associados ao “regime fascista” derrubado pela revolução dos cravos.
A revolução fez emergir novos ideais e valores, mas nenhum que desse aos portugueses uma nova imagem do seu país. De um Portugal voltado para o ultramar, a nova classe política, procurou aderir culturalmente à Europa. No entanto, a adesão à comunidade europeia nunca conseguiu colmatar o deficit identitário.
Uma identidade nacional começa por ser um sonho, ou seja, um projecto que povoa os ideais e que estrutura as aspirações de um povo. Uma nação que não tem um sonho colectivo vê-se quase forçada a observar constantemente o seu próprio umbigo. O povo português tem sido nas últimas décadas uma espécie de grupo de hebreus perdidos no deserto à espera que Moisés os salve. Como não têm sinais de Deus há muito tempo já duvidam que Ele exista; não sabem para onde vão e divertem-se a inventar ídolos que tanto têm de dourado como de efémero. Um governante que consiga pôr os portugueses a sonhar tem o país na mão, para o bem ou para o mal, seja qual for o sonho. Por isso, não devemos esperar que um qualquer político oportunista sonhe por nós. Se queremos um Portugal melhor temos todos que estimular a nossa capacidade onírica.

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