quarta-feira, setembro 30, 2009

Consumo: uma Introdução

Um artefacto é qualquer coisa que tenha sido produzida pelo Homem. Um artefacto de consumo é um objecto cuja utilização não é feita pelas mesmas pessoas que o produziram.
O consumo em massa só apareceu quando as primeiras unidades fabris começaram a operar. A razão está na capacidade de replicar inúmeras vezes o mesmo objecto. A produção em massa diminui o custo de fabrico de cada mercadoria. Banalizou-os, reduzindo-os ao mínimo valor económico. Distanciou-se do valor da singularidade e da raridade.
A produção em massa conduziu à procura de novos mercados, satisfazendo as necessidades dos consumidores ou inventando necessidades que não existiam. A urgência de escoamento dos produtos massificados conduziu a alterações comportamentais da população. Ninguém consumia Corn Flakes antes dos produtores de milho implementarem novas técnicas agrícolas, que fizeram aumentar exponencialmente a produção. Ninguém tinha necessidade de ter relógios de várias cores e formatos, cada um a condizer com um tipo de roupa, antes da Swatch popularizar o conceito de relógio-adorno.
Foi a produção em massa que, através da publicidade, alterou o comportamento de consumo das populações. Por sua vez, os novos hábitos de consumo alteraram os padrões diários e a cosmovisão das sociedades ocidentais.
Através de processos culturais, a publicidade manipulou a nossa consciência da realidade. Em regra, a publicidade tenta criar na mente do público uma associação entre o produto e um ideal que já existe (residual). O ideal hegemónico de masculinidade tem servido, por exemplo, para conferir uma identidade específica (masculina) à mercadoria que pretende vender. Máquinas de barbear, after-shave, automóveis e tabaco são alguns bens de consumo que, à luz do público, reforçam a identidade masculina de quem os usa. Digamos que um indivíduo se sente “mais homem” por usar uma determinada colónia ou fumar a marca X. O mesmo acontece com outras identidades pessoais. A feminilidade, a sensualidade, a juventude, a atitude desportiva, o estar na moda, são alguns exemplos. As mercadorias que consumimos marcam muito a noção de quem somos. Por vezes temos a sensação que somos o que consumimos.

terça-feira, setembro 29, 2009

O Passado no Presente

O tema do passado é fundamental. Em termos ontológicos, o passado já não existe. O que existe é a memória (que é mutante) e as consequências que as acções do passado têm na forma como o presente está estruturado.
Quando um movimento procura estabelecer um novo paradigma político, um dos processos mais eficazes é a manipulação da memória.

Temos que deixar de pensar na história como um conjunto de acontecimentos que existem de per si. A imagem que temos do passado é sempre perspectival; ou seja, é sempre uma construção cultural que parte do ponto de vista e dos interesses de quem detém o poder de produção da história.

Qualquer regime baseia-se sempre num conjunto de parâmetros culturais, numa mentalidade (ou visão do mundo). Destes parâmetros faz parte a memória histórica. Daí que qualquer mudança política seja sempre precedida de uma mutação espiritual. É que para chegar ao poder não chega fazer um "putsch". É preciso que o novo regime faça sentido à luz do sistema de valores dominante. Isto porque um regime, ainda que não seja populista, precisa de ter nas suas mãos o coração de uma parte significativa da população.

Quando se pretende agir politicamente há três atitudes possíveis em relação ao passado:
- A ruptura absoluta, característica da modernidade como fenómeno cultural. Em nome de um certo conceito de progresso, a modernidade procurou "arrumar" com o passado para um canto (religião, tradições, etc).
- A evolução, no sentido de aperfeiçoamento, do passado. Este processo foi escolhido por Marcello Caetano a partir do momento em que tomou conta dos destinos da Nação. Actualmente também existem "renovadores". O trabalho destes indivíduos é quase sempre ingrato, quando tentam salvar um regime cuja entropia é irreversível.
- A restauração. Trata-se de criar uma ponte entre o presente e uma dada época histórica cuja memória nos provoca a sensação de saudade. Qualquer coisa que não esteja ligada à memória histórica é kitsch, dá-nos sempre uma sensação de artificialidade e "mau gosto".

segunda-feira, setembro 28, 2009

Um Mundo Melhor

Disse Karl Popper que cada comunidade de seres vivos segue o mesmo fim: procurar um mundo melhor. Uma mudança de nicho ecológico, uma transformação interna que possa adaptar melhor a espécie ao meio circundante, a migração para um local onde o meio seja mais abundante…
Talvez a intenção inconsciente de Popper fosse a de universalizar a todos os seres vivos uma característica profundamente humana: a Utopia.
Todos nós procuramos o lugar perfeito ou tornarmo-nos perfeitos para o lugar que habitamos. A relação entre o Homem e o Ideal não pode ser datada. Existiu sempre. A procura da perfeição exprimiu-se logo nos primeiros hominídeos, com os seus utensílios e práticas de nomadismo. Depois, o Sagrado e o Mundo Espiritual perfeito.
Procurar um ideal parte do desejo de dominação: dominarmo-nos a nós mesmos e ao meio que nos rodeia, de maneira que estes se adeqúem a determinada forma.
Os ideais humanos focam quase sempre os mesmos temas: Liberdade, Justiça, Paz e Abundância. Paradoxalmente, atingir um ideal não dá serenidade, ou quando dá, é de curta duração. A mente voa, a imaginação divaga. E surgem novos ideais. Ainda que o Ideal seja atingido, o Ser Humano criará outro.

quarta-feira, setembro 09, 2009

Humano

Há certos crentes que ficariam mais chocados se uma imagem ou estátua do seu ídolo fosse vandalizada do que se o vizinho fosse esbofeteado. Porque é que isto acontece? Porque o "humano" é um atributo que pode ser projectado noutros seres que não façam parte da definição biológica de Homo sapiens. Nós podemos sentir que algo é humano independentemente das suas características materiais (físicas). É como se o humano fosse um espírito que pode habitar um Homo sapiens, um ídolo ou até um animal de estimação.
O humano de que falo é um parâmetro cognitivo (inato) que se pode manifestar de forma diferente, consoante a vida social e afectiva de cada um. O problema é que este parâmetro pode ser manipulado de forma a valorizar alguns seres e a discriminar outros.
Humano é um ser dotado de alma. Utilizo a expressão alma sem conotações religiosas. Alma aqui é uma substância imaterial que confere propriedades específicas a algo: singularidade, capacidade de evocar nos outros sentimentos e emoções, não se esgota na compreensão humana, tem um lado obscuro, inspira a imaginação do observador e tem um atributo fundamental: vontade própria. Quem reconhecer estas características num objecto, num animal, numa planta ou num Homo sapiens, atribui-lhe humanidade.
Humano pode ser um rótulo, mas é um rótulo que defende os seres de potenciais abusos. A opressão começa com a desumanização, que pode ser expressa ou implícita, assumida ou inconsciente. Eu só consigo matar ou praticar certas crueldades a um ser se não o considerar humano. Há processos mentais que provocam o "desligar" da empatia e a objectificação do outro. Posso dar como exemplo a guerra. Nenhum soldado conseguiria alvejar o inimigo se não tivesse uma preparação psicológica prévia de desumanização dos soldados inimigos. Podemos fugir à questão e dizer que «humano é toda a gente», mas a verdade é que os nossos comportamentos muitas vezes demonstram que não somos assim tão abrangentes.

Ver também o texto A Ideologia do Humano neste blogue

O Centro Comercial

Os centros comerciais são hoje em dia muito mais que espaços de compra e venda de produtos. Fazem parte da rotina diária de milhões de pessoas em todo o mundo e cumprem inúmeras funções, para além das comerciais. Em meados da década de oitenta, os empresários que projectaram estes edifícios começaram a introduzir actividades lúdicas e serviços que não apenas tornavam viável a permanência mais prolongada dos clientes mas que também os atraíam como forma de ocupação dos tempos livres. Em primeiro lugar é possível passar um dia inteiro no shopping sem que isso implique ficar privado de outras necessidades. O cliente tem ao seu dispor um amplo parque de estacionamento (por vezes gratuito) onde pode estacionar o seu meio de transporte por tempo indeterminado, zona de restauração com serviço permanente, locais de apoio às crianças (fraldário, sanitários especiais, actividades lúdicas, etc), locais de convívio (por vezes com espaços verdes), pontos de acesso à internet e um autêntico exército de funcionários preparados para satisfazer as mais diversas necessidades dos clientes (informações, segurança, apoio a deficientes, são alguns exemplos).
Estas são as condições de base que possibilitam aos utentes uma sensação de confiança e descontracção. Não é necessário sair do edifício para satisfazer necessidades que vão do carácter fisiológico até ao profissional. Hoje em dia é possível ir trabalhar para o centro comercial, bastando ao utente sentar-se diante de um computador. Mas se o shopping cumpre estas funções tão objectivas (comércio, trabalho e satisfação de necessidades básicas) porque é que cada vez mais pessoas o vêm como espaço de lazer? Por um lado, estes locais foram aos poucos concentrando no seu interior actividades comerciais tradicionalmente associadas à descontracção, diversão e convívio. O tradicional café com esplanada transferiu-se para o centro comercial, tal como os jardins, as arcadas de jogos e os parques de diversão. Por outro lado, o centro comercial transformou-se de forma a ser pouco perceptível a separação entre o lazer e o comércio. A arquitectura e a decoração são cada vez mais atraentes e menos formais, a distribuição espacial das diversas actividades procura diluir as diferenças institucionais que cada uma cumpre. Daí que todo o espaço do centro comercial seja, nos dias que correm, encarado como zona de lazer. Ao fim-de-semana é frequente vermos famílias a passar dias inteiros no shopping. Convivem, tomam todas as refeições, fazem compras, visitam exposições (de pintura, escultura, etc), apreciam as últimas novidades nas montras das lojas, vão ao cinema e recreiam-se no parque de diversões.
Todas as actividades são percepcionadas como lúdicas, mesmo que inicialmente tenham uma finalidade objectiva (comprar uma ferramenta, fazer transferências bancárias, mandar consertar um electrodoméstico, trabalhar através da internet, etc). Como o espaço do edifício foi projectado para transmitir um ambiente de lazer, tudo o que existe no seu interior adquire o mesmo carácter. Trata-se de um mecanismo cognitivo (estético) através do qual o pequeno espaço integrado (a loja) adquire o mesmo sentido do espaço mais vasto (o centro comercial). A reforçar este mecanismo podemos encontrar a atitude dos transeuntes. É raríssimo encontrarmos alguém nestes locais com uma indumentária formal, uma maneira de andar tensa ou com grandes formalidades. Regra geral, os utilizadores “passeiam” descontraidamente pelos corredores, deambulam muitas vezes com um rumo pouco definido enquanto apreciam a paisagem do centro. Durante os momentos de convívio, passados à esplanada de um café ou nos inúmeros bancos distribuídos pelos corredores, a conversa é serena, com temas triviais e cheia de boa disposição. O comportamento descontraído dos utentes, sendo reflexo do clima propiciado pelo espaço, acaba também por ser mais um processo indutor de descontracção e informalidade. Quando entramos no centro comercial somos envolvidos por uma arquitectura e decoração informais e confrontados com uma paisagem humana constituída por indivíduos relaxados e alegres. O resultado é sentirmo-nos da mesma forma, passamos a fazer parte do mesmo ambiente lúdico.
Nesta altura podemos concluir que os centros comerciais são espaços altamente eficazes na produção de estados de espírito descontraídos e bem-dispostos. Mas este é apenas o início do processo, a base fértil na qual se irão desenvolver teias de relações sociais. A desinibição dos utentes do shopping dá lugar a comportamentos criativos e de procura de prazer. Trata-se do aspecto mais importante deste texto, que irei delinear de seguida.
Quanto maior for a oferta de serviços, comerciais e lúdicos, maior é a atracção exercida sobre os consumidores. A diversidade providencia ao cliente uma sensação de poder, o poder de escolher. Este fenómeno por si só já é gerador de prazer. No entanto, a diversidade cria a percepção de um espaço sem limites, que não é monótono. Um grande shopping possibilita um número quase infinito de percursos. No mesmo espaço, cada visita oferece uma experiência singular, consoante o trajecto percorrido.
Apesar do número de lojas ser finito, há sempre remodelações. Há lojas que fecham e cedem o espaço a outras, contribuindo para quebrar a monotonia e renovar a paisagem do centro comercial.
A paisagem humana é sempre diferente. Em cada visita é possível apreciar novos transeuntes, que se passeiam pelos corredores e constituem um interesse visual muito particular. Consoante os seus interesses, o explorador urbano pode contemplar os dotes do sexo oposto, tomar consciência da indumentária característica de cada visitante, analisar os “tipos” corporais e sociais predominantes no espaço à sua volta, mas também se pode mostrar. Através do vestuário e da postura corporal, qualquer indivíduo consegue transmitir aos outros uma identidade particular. Por isso, o cliente habitual do centro comercial usa o espaço para se mostrar, para comunicar a sua identidade específica.
É nesta teia visual onde se cruzam valores de género, moda, atracção sexual, estatuto socioeconómico e outros, que se estabelecem relações sociais. Tudo num ambiente de informalidade. É possível “meter conversa” com outro transeunte ou com as pessoas que exercem a sua actividade profissional no interior do centro comercial. São relações “leves”, descontraídas, que podem durar alguns minutos ou vários anos. Também é comum transportar para o shopping relações sociais que nasceram noutros contextos. Uma vez que o centro comercial oferece um ambiente lúdico, os amigos, as famílias e os casais procuram estes espaços para ocupar os tempos livres fugindo aos ambientes formais e monótonos do seu quotidiano.
Por estas razões, um centro comercial é muito mais do que um simples aglomerado de espaços de transacção económica. É um universo próprio de relações sociais, dinâmico e sem forma (isto é: sem limites, inacabado). O centro comercial é uma narrativa aberta e, por isso, exerce fascínio sobre tanta gente. Qualquer pessoa pode escrever mais um capítulo na vida daquele espaço, ou criar a sua própria história. É um local para ver e ser visto, para ser produtor e produto da paisagem urbana.