sexta-feira, fevereiro 10, 2006

Comportamentos de Consumo: "Ir às compras"

Há pouquíssimas análises sobre o tema “fazer compras”. As práticas e comportamentos deste domínio têm sido invisibilizadas pela psicologia e ciências sociais, havendo algumas excepções. Parece que “ir às compras” é um tipo de acção sem qualquer importância, um aspecto ligado às idiossincrasias do indivíduo. Para muitos, é simplesmente entrar numa loja para adquirir bens que necessitamos. O mecanismo da escolha parece reduzido a: gastar o menos possível e obter o máximo de qualidade ou de quantidade. Nada poderia estar mais longe da verdade.
Fazer compras serve um leque de objectivos sociais. Em primeiro lugar, contém um aspecto essencial que é o exercício da escolha. Durante o exercício da selecção, o ‘cliente’ apropria as mercadorias. Transforma-as, partindo da amálgama de objectos na loja em artefactos que reflectem o comprador e as relações sociais em que se insere. Os objectos passam a transportar uma identidade pessoal distinta e a incorporar relações sociais específicas. Este processo é exemplificado pela culinária familiar. Uma pessoa converte um conjunto de materiais crus, adquiridos como mercadorias, numa refeição que exprime e incorpora as relações que unem os membros da família. Em segundo lugar, deambular e ‘andar a ver’ as coisas é uma actividade prazenteira em si mesma, mesmo sem se chegar a comprar nada. Os clientes não estão à mercê do mundo dos objectos. Em vez disso, a sua interpretação cria um espaço que lhes confere uma sensação de liberdade. Este espaço não é independente de certos determinantes sociais. No entanto, o processo da sua criação permite certos graus de liberdade. O prazer da prática de fazer compras deriva da habilidade para estar sozinho ou acompanhado, de fazer as coisas sem urgência, sem a obrigação de comprar nada, de estar fora de casa e operar sem os constrangimentos das responsabilidades (Lehtonen & Maenpaa, 1997; Carrier,1993).
O prazer que existe na prática de fazer compras não deriva apenas da possibilidade de autonomia. Muitas vezes o aspecto agradável desta actividade é a sociabilidade que lhe está associada. Pode ser uma forma de passar algum tempo em companhia de outra pessoa. Providencia um meio para a criação e manutenção das relações sociais. Desta forma afecta o processo de identificação social. Enquanto se ‘faz as compras’, a comunhão pode ser edificada através da acção partilhada. Fazer compras cria uma grelha de acção segura e conveniente para um momento de descontracção partilhado.
Fazer compras tem a ver com fantasias relacionadas com a mudança de identidade individual. A loja é um teatro no qual se inventam e testam papeis. É a multidão e a sociabilidade dos locais públicos que criam o cenário de anonimato e que dão origem a uma forma de libertação relativamente aos constrangimentos quotidianos. O senso de não se ser bem quem se é, ou então, de não se ser ninguém (o que é muito provável que aconteça numa multidão) conduz a uma fantasia identitária. Isto implica não apenas que os clientes sejam como camaleões no que diz respeito à sua identidade, mas que, tal como crianças, joguem voluntariamente com os seus papéis sociais. Fundamental à experiência de fazer compras é o prazer que deriva da potencial abertura e remoção das fronteiras do eu. Enquanto forma social, a prática de fazer compras é possível graças à emergência de um sujeito moderno com uma tendência para o sonho romântico; fazer de conta que se é outra pessoa.
Há ocasiões em que o ambiente de uma loja actua como uma forma de grelha destinada a alterar o comportamento dos clientes. De certa forma, o comprador veste uma nova pele na loja, experimentando uma personalidade ou estilo de comportamento. Tal como existem categorias de “vestir a rigor” ou “desportivo”, conceitos que se opõem relativamente ao vestuário, também há diferentes expectativas acerca da forma como cada um se comporta dentro de um estabelecimento comercial, consoante se trate de um bar ou de um loja de roupa, por exemplo.
Um antropólogo (Daniel Miller, 1997) compara o prazer de gastar dinheiro à excitação sexual. No acto de comprar um artigo há uma sensação de poder e de propriedade que alivia a tensão e produz um sentimento efémero de realização pessoal. Se bem, que gastar dinheiro tenha a sua própria sensualidade, esta comparação parece-me excessiva. Além disso, há outras sensações envolvidas na aquisição de bens. Muitas vezes, o consumidor investe numa acumulação gradual de objectos e o idioma dominante provém de um senso de propriedade e descendência e não da sexualidade; o objectivo é o armazenamento ou coleccionismo e não a fruição.
A forma como se gasta o dinheiro merece ser analisada. Há determinados bens de consumo nos quais a poupança é fundamental enquanto noutros é completamente irrelevante. Porque é que o cliente de um hipermercado se preocupa em “descobrir” as marcas mais baratas quando vai comprar papel higiénico, leite, detergente e pasta de dentes? Quando compra bilhetes para assistir a um concerto ou quando vai jantar fora com os amigos o dinheiro parece que já não é tão importante… A resposta a esta questão está na forma como o consumo se relaciona com o Eu (ou Self, se preferirem a expressão em inglês). As actividades de consumo ligadas à diversão e ao prazer reforçam aspectos no indivíduo tais como auto estima, auto confiança e condição anímica. O reforço do Eu implica um aumento de expressividade e da sensação de realização pessoal. O indivíduo tende a procurar o prazer, “abrindo-se” à expressividade. Com esta “abertura”, as condicionantes sociais (neste caso, financeiras) passam para segundo plano.
No caso dos comportamentos que visam despender menos dinheiro, o processo é de retenção do prazer. Na poupança há uma lógica centrípeta (dirigida para dentro). O importante é acumular.
Estes dois princípios, o do consumo expressivo (dispendioso) e o da retenção, andam quase sempre articulados. A expressão “poupar numas coisas para gastar noutras” é disso exemplo. O princípio da retenção oferece a estabilidade e o enquadramento para que os sujeitos vivam “habitualmente”, com serenidade e com rotinas, uma vez que todos necessitamos de uma estrutura social com um grau de confiança elevado. Por sua vez, o princípio do consumo expressivo providencia uma fuga à monotonia e o libertar das tensões que foram acumuladas pelo princípio da retenção.
Quando uma pessoa vai fazer compras a um supermercado é muito comum vermos os dois princípios em acção. O consumidor adquire diversos produtos chamados de “primeira necessidade” (higiene, alimentação, etc) e acaba por complementar esta tarefa com a concomitante aquisição de chocolates, bolachas ou outros doces. Este comportamento, para além de articular os princípios de retenção com o reforço do Eu, reflecte uma outra articulação: a lógica sacrifício / compensação. Digamos que o comprador compensa o seu “trabalho” de fazer compras adquirindo certos bens destinados ao seu prazer pessoal.
Há um outro aspecto dentro do mesmo tema (aquisição de bens) que merece ser aqui tratado: a forma como as identidades de género estruturam as práticas e discursos de consumo.
A prática de fazer compras na sociedade moderna (ocidental e industrializada) é uma actividade que surge associada ao género. Especificamente, é encarada como algo relacionado com a esfera feminina. Consequentemente, quando as crianças são socializadas nos seus papeis de género, aprendem, através do processo de aquisição da sua identidade, que fazer compras faz parte das actividades que ajudam a definir o papel da mulher, e, especialmente, o papel distinto da doméstica. Por contraste, o papel do homem adulto é definido em termos do trabalho assalariado, i.e., como “ganha-pão”e, desta forma, é identificado com actividades bastante desligadas do consumo.
Um aspecto importante que permite aos homens fazer compras sem pôr em perigo a sua imagem masculina é a presença de uma ideologia. Esta ideologia distingue as suas compras enquanto actividade das formas femininas, protegendo a sua identidade de género. Contém um contraste formulado em termos de uma dicotomia entre o instrumental contra o expressivo. Assim, os homens são inclinados a encarar as compras como uma actividade puramente dirigida à aquisição, relacionada com a satisfação de necessidades. As mulheres, por sua vez, vêm-nas como uma actividade que contém prazer em si mesma e que se relaciona com a gratificação de desejos. Isto é dizer que os homens presumem que a actividade em causa apenas ocorre quando se estabeleceu a existência de uma necessidade, não vendo qualquer valor intrínseco na actividade em si. As mulheres, por outro lado, apesar de reconhecerem o papel da satisfação de necessidades, estão também inclinadas a ver a actividade como algo que tem um valor inerente, independentemente do facto de se comprarem ou não as mercadorias.
Os homens, seja por causa da sua socialização ou devido ao seu tradicional maior envolvimento no mundo do trabalho assalariado, estão predispostos a encarar o consumo como uma actividade subordinada a esta esfera, mesmo sendo “trabalho feminino”. Consequentemente, eles não só não esperam que seja agradável mas presumem que os padrões sejam os mesmos do mundo do trabalho (a racionalidade e a eficiência). Isto conduz à tendência dos homens de definir esta actividade através da ideia de necessidade. Por contraste, as mulheres tendem a seguir um ponto de vista relacionado com o lazer. Inclinam-se a definir a actividade como algo agradável e a rejeitar qualquer referência puramente instrumental ou utilitária.
A ideologia masculina não apenas oferece a possibilidade dos homens fazerem compras sem porem em causa o seu senso de género, mas providencia também argumentos para descrever o estilo feminino de levar a cabo esta tarefa: “ é irracional”, reforçando o estereótipo masculino que diz que as mulheres têm uma conduta mais impulsiva, emotiva e desligada do raciocínio. Empregando o modelo masculino como um padrão, os homens conseguem criticar as mulheres por: (a) despenderem demasiado tempo nesta actividade, (b) visitar demasiadas lojas, (c) serem incapazes de se decidir quanto a produtos alternativos, e (d) porem fim a uma “excursão” a diversas lojas graças à compra do primeiro artigo que viram.
Em resposta, as mulheres empregam a sua concepção de fazer compras como uma ideologia; justificando a sua própria conduta e negando a legitimidade da masculina. As mulheres comummente queixam-se que os homens: (a) praticam pouco a actividade, (b) quando fazem compras vão a poucas lojas, (c) não sabem o que querem, (d) muitas vezes compram a primeira coisa que vêm com a pressa de saírem da loja e, (e) não estão a par das mercadorias nem dos preços destas.
Desenvolvendo um ponto de vista especificamente masculino relativamente à prática de fazer compras, em contradição com o feminino, os homens concretizam duas acções. Primeiro, providenciam uma racionalidade que lhes permite fazer compras sem comprometer a sua identidade de género. Segundo, articulam uma ideologia que serve para condenar e subestimar a conduta feminina numa esfera em que elas predominam manifestamente. Fazendo-o, os homens evitam ter que reconhecer o facto de que as mulheres não apenas desempenham esta tarefa de consumo, mas que também manifestam uma perícia superior neste processo. Empregando a ideologia masculina como base para uma crítica, a perícia feminina nesta esfera é efectivamente subestimada, e, como tal, a sua conduta é representada sob a forma de uma confirmação do estereótipo masculino. Desta forma, “a importância e competência das mulheres neste campo – que de outra forma poderia ser vista como uma ameaça à dominação societal e cultural masculina – é castrada (Campbell, 1997).

Referências : CAMPBELL, Colin, 1997, “Shopping, Pleasure and the Sex War” In The Shopping Experience, Sage, London.
LEHTONEN , Turo-Kimmo & MAENPAA , Pasi , 1997 , “Shopping in the East Centre Mall” In The Shopping Experience , Sage , London , T. O. , N. D..
CARRIER , James , 1993 , “The Rituals of Christmas Giving” In Unwrapping Christmas , Clarendon Press , Oxford.
MILLER, Daniel, 1997, “Could Shopping Ever Really Matter ?” In The Shopping Experience , Sage , London , T. O. , N. D..

Sugestões : obras sobre consumo

APPADURAI , Arjun (1986(92)), The Social Life of Things, Cambridge University Press , Cambridge.

BOCOCK, Robert, 1993, Consumption, Routledge , London & N. Y..

CAMPBELL, Colin, 1987, The Romantic Ethic and the Spirit of Modern Consumerism, Blackwell , Oxford.

CARRIER, James, 1993, Unwrapping Christmas, Clarendon Press, Oxford.

CARRIER, James, 1995, Gifts and Commodities , Routledge, London & N.Y..

CARRIER, James, 1996 , "Consumption" in Encyclopedia of Social and Cultural Anthropology , Routledge , London & N.Y..

CARRIER, James, 1996, “Exchange” In Encyclopedia of Social and Cultural Anthropology , Routledge , London & N.Y..

CARRIER, James (ed), 1997 , Meanings of The Market , Berg , Oxford & N.Y..

CLAMMER , John , 1997 , Contemporary Urban Japan , Berg , Oxford.

DOUGLAS , Mary, 1996, The World of Goods, Routledge, London & N.Y..

DOUGLAS, Mary, et al, 1997 , The Shopping Experience , Sage , London.

FALK, Pasi, 1994, The Consuming Body, Sage , London.

MACCAY, Hugh (Ed), 1997, Consumption and Everyday Life, Sage, London.

MCCRACKEN, Grant, 1991, Culture and Consumption: New Approaches to the Symbolic Character of Consumer Goods and Activities, Indiana University Press.

MCCRACKEN, Grant, 2005, Culture And Consumption II: Markets, Meaning, And Brand Management, Indiana University Press.


MILLER, Daniel, 1994, “Artefacts and the Meaning of Things” In Companion Encyclopedia of Anthropology, Routledge. London.


MILLER, Daniel, 1994 (97), Modernity – An Ethnographic Aproach , Berg , Oxford & N.Y..

MILLER, Daniel, 1997, Capitalism – An Ethnographic Aproach , Berg , Oxford & N.Y..

MILLER, Daniel,1995, Acknowledging Consumption , Routledge , London & N.Y..

MILLER, Daniel, 1998, A Theory of Shopping, Polity Press, Cambridge.

MILLER, Daniel (Ed), 1998, Material Cultures, UCL Press, London.

MOERAN, Brian & SKOV, Lise (Eds), 1995, Women, Media and Consumption in Japan, Curzon Press, Surrey.

MOERAN, Brian, 1996, A Japanese Advertising Agency – an anthropology of media and Markets, Curzon Press, Surrey.

PHILLIPS, Ruth & STEINER, Christopher (Eds.), 1999, Unpacking Culture – Art and Commodity in Colonial and Postcolonial Worlds, University of California Press, Berkeley.

quarta-feira, fevereiro 08, 2006

Pedagogia e a Noção de Pessoa

A capacidade de produção e de compreensão de enunciados está dependente da assimilação de habitii, de estruturas mentais dinâmicas que tornam possível a acção com autonomia. Um habitus é criado interiormente pelo sujeito quando este se entrega a uma determinada prática com concentração e motivação. Daí que os antigos modelos pedagógicos baseados no arco reflexo do behaviorismo, que tinham como pilares as noções de repetição e recompensa, falhem no que toca aos aspectos criativos da aprendizagem. Aprender não pode ser apenas decorar os enunciados de um conhecimento fechado. Há que abrir espaço ao aluno para que este conforme o conhecimento aos seus próprios parâmetros mentais e motivações, estimulando-o para a descoberta e exploração dos domínios do saber. A experiência diz-me que a maioria dos alunos quer ser protagonista e não apenas sujeito no processo de aprendizagem.
A didáctica das disciplinas deve conduzir, por um lado, à aquisição de competências de utilidade imediata e de esquemas cognitivos que facilitem futuros processos de aprendizagem, e, por outro, à formação de uma identidade moral e crítica que faça nascer cidadãos empenhados e participativos.
Muitos alunos do segundo ciclo do ensino básico encontram-se numa fase de transição, no que diz respeito à maturidade cognitivo-emocional, entre o Estágio Operatório Concreto e o Estágio das Operações Formais na Teoria Construtivista de Piaget. Daí que as suas competências estejam mais desenvolvidas no que diz respeito à capacidade de classificação e de agrupamento, de reversibilidade e linguagem socializada, e menos na capacidade de pensar sobre hipóteses e ideias abstractas ou na linguagem com suporte do pensamento conceptual. Isto não quer dizer que se deva adoptar uma postura paternalista durante o processo de ensino. Se, por um lado, os alunos não estão ainda preparados para projectar lógicas de pensamento de carácter abstracto ou filosófico, há capacidades que, nestas idades, oferecem um enorme potencial de aprendizagem que cabe ao docente dinamizar.
Na minha opinião existe um paternalismo estéril na atitude de muitos professores e encarregados de educação face à relação pedagógica com crianças deste grupo etário. Tal atitude tem como princípios duas noções: a do bom selvagem (de Jean-Jacques Rousseau) e, outra mais prosaica, que idealiza o jovem na puberdade como uma espécie de adulto menos capaz (como um adulto frágil e diminuído física e intelectualmente). A primeira noção retrata a criança como um ser inocente, com pulsões desenfreadas e quase incapaz de ser responsável autonomamente. A segunda leva o professor ou tutor a negar ao jovem o acesso à “aventura” e à “exploração” de temas e exercícios nunca antes desenvolvidos. Esta segunda noção parece-me ser a mais castradora e com consequências mais nefastas. O aluno é abalado na sua auto estima, uma vez que se sente “encapsulado” pela ideia que o professor faz dele. Nunca será capaz de demonstrar que consegue ir mais longe nem de obter o reconhecimento devido. Além deste aspecto, como não lhe é reconhecida a capacidade de ser responsável e autónomo, o jovem aliena-se da estrutura social escolar. Isto pode resultar em comportamentos infantis ou, simplesmente, em não levar a sério o processo educativo que o enquadra.
Ao projectar a forma como vai abordar os conteúdos programáticos, o professor tem que ter em mente os seguintes pressupostos:

Em vez de explicar os temas de maneira simplificada em demasia, deve “entrar” na cultura juvenil e, a partir daí, criar analogias e metáforas que permitam a todos compreender os conhecimentos em causa. Portanto, o essencial não é tornar tudo demasiado simples, mas sim que todos falem a mesma linguagem.

Todos os alunos devem confiar na pessoa que é o professor. Só é possível “liderar” a turma se todos reconhecerem a integridade e fiabilidade no carácter do docente. Como exemplo, o professor deve procurar nunca mentir seja qual for a pergunta que um aluno faça. A confiança, no meu entender, não é uma atitude que derive da autoridade a-priori, ou seja, o estatuto de professor (que confere alguma autoridade de início) não cria confiança nos alunos por si só. Ganha-se com o tempo, respondendo com integridade aos “testes” que, frequentemente, as crianças colocam.

O professor obterá melhores resultados se conseguir leccionar os conteúdos sem criar nos alunos a sensação de “esforço” ou “sacrifício”. É muito melhor apelar ao envolvimento através de “jogos” e “dramatizações” que, aparentemente, não fazem parte do imaginário escolar (rigoroso e maçador), do que colocar os jovens perante exercícios formais estáticos.

O professor deve mostrar-se acessível aos alunos no que toca à comunicação pessoal. Tal acessibilidade está, em grande parte, dependente do grau de confiança e fiabilidade descritas na alínea 2. Ao confiar no professor, o jovem expõe problemas, dúvidas, sugestões e pareceres, uns referentes aos conteúdos programáticos, outros de carácter extra-escolar. Com esta comunicabilidade, o docente tem acesso à personalidade do aluno e ao mundo social que o envolve (elementos positivos e negativos do meio familiar, do círculo de amigos, etc). O ser acessível não se consegue com um distanciamento excessivo.


Quanto à detecção de dificuldades na aprendizagem, na minha opinião, é de grande utilidade o papel do psicólogo que, a nível particular ou ligado à instituição de ensino, produz descrições dos aspectos sócio-afectivos do aluno. Exceptuando os casos de jovens com acentuadas deficiências cognitivas, a maioria dos casos de insucesso escolar prendem-se, penso eu, com falta de motivação e/ou de auto estima. Como é óbvio, o docente não pode resolver todos os problemas presentes no quotidiano do jovem, qual deus ex machina, que, do topo do cenário teatral, desfaz as contradições e tensões sociais que enredam as personagens. No entanto, se existir a comunicação necessária entre as duas pessoas, o professor e o aluno, em conjunto com as informações dadas pelo encarregado de educação ao director de turma, é possível perceber a(s) causa(s) do insucesso. As dificuldades agudizam-se, isso sim, quando se pretende superar causas com uma origem familiar. Por vezes, a falta de auto estima pode ser resolvida recorrendo ao simples elogio, encorajamento verbal ou desmistificando o carácter sagrado com que muitas vezes os alunos encaram determinado tipo de conteúdos lectivos. Por outro lado, o trabalho do professor é contrariado quando o jovem tem em casa alguém que o diminui na sua auto estima.

Links Úteis sobre Segurança Informática


Para quem se interessa por segurança informática e gosta de testar a vulnerabilidade dos sistemas que cria, deixo aqui alguns links que me parecem úteis.



Sítio da Foundstone, uma subsidiária da Mcafee, onde poderão encontrar ferramentas de segurança muito interessantes
http://www.foundstone.com/index.htm?subnav=resources/navigation.htm&subcontent=/resources/overview.htm

HNC3K, este sítio contém inúmeros recursos sobre segurança (tutoriais, ferramentas, textos...)
http://www.hnc3k.com/

Illegalworld, muitas utilidades, informáticas e não só.
http://www.illegalworld.com/search.html

Geobytes, para fazer a localização geográfica de um dado IP.
http://www.geobytes.com/IpLocator.htm?GetLocation

Sítio do Johnny, informações e tutoriais sobre a utilização do Google como ferramenta de segurança.
http://johnny.ihackstuff.com/index.php

Portal inteiramente dedicado à segurança informática. Aqui há de tudo.
http://www.all-internet-security.com/

Gideon Research Corporation, ferramentas e tutoriais.
http://grc.com/default.htm

SANS, academia e centro de pesquisa de aspectos ligados à segurança informática.
http://www.sans.org/

Sourceforge, portal com bastantes artigos e programas sobre segurança.
http://sourceforge.net/

Sítio sobre a segurança no windows.
http://www.windowsecurity.com/

Sítio com textos, programas, tutoriais para levar a cabo testes de segurança
http://happyhacker.org/

Mais um sítio com alguns recursos.
http://www.totse.com/en/hack/index.html

Página da Polícia Judiciária sobre a legislação relativa aos crimes informáticos
http://www.policiajudiciaria.pt/htm/legislacao/dr_informatica/Lei109_91.htm

terça-feira, fevereiro 07, 2006

Hermes, o Moderno

Hermes é o meu deus grego favorito. Os romanos chamavam-lhe Mercúrio. É para mim tão inspirador que utilizei o mito como metáfora do artista moderno na minha tese de mestrado : O Complexo de Mercúrio - estudo sobre os critérios modernos de comunicação e apreciação visual.


Hermes era, segundo a lenda, filho de Zeus e de da ninfa Maia. Nasceu, segundo o mito, numa caverna da Arcádia. Logo após o nascimento, a mãe enfaixou-o e colocou-o a dormir dentro de um cesto sem ninguém dar por isso. No entanto, nem a mãe esperava que o filho tivesse tanta iniciativa em tão tenra idade. Hermes fugiu para a Tessália, onde roubou várias cabeças de gado do rebanho de Admeto que Apolo protegia. Escondeu o gado roubado em Pilos, em Messênia, voltou à caverna antes do dia terminar, deitou-se dentro do cesto e deixou-se estar quieto. Apesar de Apolo ser especialista nas artes divinatórias, demorou algum tempo a descobrir o gado roubado e a desconfiar da identidade do astucioso ladrão. Quando descobriu, queixou-se do roubo à mãe de Hermes que se limitou-se a apontar, espantada, a "pobre criança" enfaixada e quieta dentro do cesto... Mais tarde, Apolo apelou a Zeus e Hermes foi obrigado a devolver o rebanho.
Durante o furto, o recém-nascido Hermes tinha encontrado uma tartaruga morta. Com a carapaça e algumas tripas inventou a lira, instrumento musical que, mais tarde ofereceria a Apolo em troca do perdão. Encantado com o som deste instrumento musical, Apolo presenteou Hermes com um cajado de ouro que posteriormente se tornou o kerykeion, símbolo dos mensageiros, chamado caduceu pelos romanos.
Hermes é muitas vezes representado em estátuas e pinturas com um caduceu na mão. O caduceu é um cajado com duas serpentes enroladas (ainda hoje este símbolo é frequentemente utilizado por instituições médicas, farmacêuticas e outras ligadas à saúde). De acordo com o mito, Hermes separou duas serpentes que lutavam entre si utilizando o cajado. As serpentes enrolaram-se no bastão e, desta forma, deram origem a um símbolo de paz. O próprio deus passou a ser encarado como mensageiro portador da paz.
Como era muito hábil, Hermes era muito requisitado pelos restantes deuses para diversas funções. A mais conhecida era a de mensageiro de Zeus.
Para os mortais ele funcionava como protector das mais diversas actividades. Hermes era o deus que protegia :
- Mercadores e os ladrões. É fácil perceber porquê. Ainda recém-nascido conseguiu roubar Apolo. Dizia-se que este deus era um grande vigarista.
- Artistas. A sua criatividade tornou-se lendária. A lira e a flauta dos pastores (siringe) foram inventadas por ele.
- Médicos. Segundo a lenda, foi Hermes quem assistiu ao parto de uma mortal chamada Coronis cuja gravidez se devia a Apolo.
- Viajantes. Este deus era, como mensageiro, um eterno viajante.
- Atletas. Na qualidade de corredor incansável e rápido, tornou-se o protetor dos jovens que se exercitavam nos ginásios.
Passou a ser também considerado, em épocas tardias, o inventor das práticas mágicas. Devido à sua capacidade de interpretar e transmitir os desígnios dos outros deuses, recebeu o epíteto hermeneus ("intérprete"), de onde veio a palavra "hermenêutica".
Atribuía-se à influência de Hermes a capacidade oratória ou eloquência e, ainda segundo o mito, era ele que conduzia a sombra dos mortos ao reino de Hades.
Os romanos, que o denominavam Mercúrio, deram o mesmo nome ao único metal líquido à temperatura ambiente. Tal como um líquido tem a propriedade de atravessar frestas, passagens estreitas e, de certa forma, violar a realidade sólida, o deus tinha o poder de se esgueirar por entre as várias dimensões da cosmologia greco-romana.
Hermes foi um deus que nunca se casou. No entanto teve vários filhos. Um deles foi Autólico, o mais hábil ladrão da Grécia. Outro foi Pã, o deus flautista, que herdou do pai as qualidades musicais e a vontade de pregar partidas (de Pã deriva a palavra pânico). Ainda filho de Hermes, Hermafrodita, teve como mãe a deusa Afrodite (deusa da beleza e do amor) e nasceu com qualidades femininas e masculinas.

Cassandra e o Povo

Cassandra era filha de Príamo (o último rei de Tróia) e de Écuba. Obteve o dom da profecia graças a Apolo, que lhe prometeu ensinar as suas artes divinatórias em troca de certos “favores”. Cassandra aceitou a proposta e recebeu as lições do deus, mas, uma vez ensinada, esquivou-se aos seus desejos. Este, como vingança, cuspiu-lhe na boca, retirando-lhe o dom da persuasão mas não o de prever o futuro.
Esta princesa troiana é conhecida, sobretudo, graças às narrativas sobre a guerra de Tróia. Passava a vida cheia de angústia porque, geralmente, as pessoas que a rodeavam não davam grande importância às suas previsões. O maior sofrimento foi provocado quando, por diversas vezes, ela avisou o pai que o príncipe Páris traria a ruína à cidade de Tróia. Nunca lhe foi dado o devido crédito e Tróia ardeu sob o poder dos exércitos gregos.
O mito de Cassandra tem sido utilizado na psicologia e noutras ciências como metáfora. Quando alguém consegue ver a realidade de uma forma mais esclarecida e tenta avisar os outros sem sucesso, essa pessoa poderá sofrer do complexo de Cassandra.
É usual que os grupos evitem previsões catastrofistas em detrimento de pareceres mais favoráveis. As pessoas dão mais atenção a quem lhes augura um futuro auspicioso do que aos ‘profetas da desgraça’. Este é um mecanismo psicológico que pretende salvaguardar o bem-estar emocional. No entanto, gera-se uma tremenda angústia no indivíduo que vê a desgraça aproximar-se do grupo porque ninguém presta atenção às suas recomendações. Experimentem reparar nas previsões dos astrólogos, tarólogos e outros ‘futurologistas’. As previsões são, na sua maioria, francamente positivas. Quando são negativas aparecem sob a forma de eufemismos ou de períodos efémeros. Regra geral, o povo gosta é de ouvir boas notícias e palavras cheias de esperança. Se conseguirem encontrar um político de carreira que sofra do complexo de Cassandra talvez o Céu e a Terra mudem de lugar...

A Fluidez das Identidades Contemporâneas

Segundo Zygmunt Bauman (2000), as relações de poder na fase da modernidade em que vivemos pautam-se pela evitação. Trata-se de uma tendência para rejeitar qualquer tipo de limitação ou circunscrição – territorial, de ordem e de consequências. Cada vez estou mais convencido que o momento que vivemos se caracteriza por uma cisão na noção de liberdade tal como foi definida por Sartre. Para Sartre a condição humana está sempre vinculada à necessidade de exercer escolhas. No entanto, para Sartre as opções que tomamos acarretam sempre consequências. Ora, a condição actual é pautada pela constante fuga às consequências. Ninguém actualmente se quer agarrar a um paradigma sólido, a um estilo de vida ou identidade fixos no tempo. O poder hoje em dia reside na capacidade de fugir aos efeitos de uma identidade ou de um paradigma. O conceito de Bauman é de ter em conta porque um dos processos de poder patentes na modernidade tem sido o encarceramento conceptual. O que quero dizer com isto é que a modernidade retirou poder a determinados grupos classificando-os, arrumando-os em gavetas dos vários sistemas de pensamento que foram surgindo. Categorizar é, muitas vezes, um processo de fixação identitária, de “pôr as pessoas no seu lugar”. Contudo, nos dias de hoje o poder individual é construído e mantido através da evasão aos sistemas de classificação. “Sair do lugar” é uma prática que confere poder aos agentes. É, portanto, natural que no domínio da criatividade individual as relações de poder também gozem do “grande escapismo”. Como um mestre da evasão, o sujeito procura libertar-se de uma grelha identitária fixista. A solidez dos esquemas conceptuais (solidez entendida como estabilidade) já não é bem-vinda. Queremos identidades fluidas que nos permitam fugir ao constrangimento das consequências. Como tal, o poder adquire-se e mantém-se pelo jogo de fintas que os agentes fazem em relação aos “sólidos” da modernidade. É uma condição que evita o compromisso.
Bauman diz que uma identidade moderna assenta sempre num projecto inacabado. Utilizando conceitos de Nietzsche, afirma que não se pode ser Mensch sem se aspirar ao Ubermensche. Isto quer dizer que uma identidade moderna faz-se, em grande medida, pela destruição do presente estável. Daí que as pessoas em geral tenham uma grande dificuldade em identificar-se com um esquema social consolidado. É uma espécie de identidade que se constitui pela construção de uma utopia individual. Tal utopia é perseguida mas que nunca se pretende acabada. Se existe alguma coisa que caracterize a condição moderna é a sensação de constante inconformismo com o presente. As pessoas vivem em função do que está para além.
A chamada ‘sociedade ocidental’ sofreu uma alteração gradual a nível das metanarrativas, fruto da crescente importância que o estudo das relações de poder adquiriu, sobretudo a partir dos anos sessenta. O ‘não querer oprimir’ levou à escalpelização exaustiva das relações de poder imbuídas no discurso. Como resultado, as grandes categorias começaram a ser encaradas com alguma desconfiança, como entidades conceptuais que absorviam a diversidade infinita das pequenas diferenças. O ser humano, hoje em dia, sente a presença do caos das pequenas narrativas sempre que se propõe analisar a realidade. Tudo é relativo e único. E como se isto não bastasse, tudo é impermanente. A realidade muda constantemente de forma não linear.
Se, por um lado, o pensamento contemporâneo se serve deste agnosticismo conceptual para evitar a opressão, por outro o relativismo serve uma lógica de poder inerente a esta fase da modernidade.
A famosa expressão “dissolver os sólidos”, cunhada pelos autores do Manifesto do Partido Comunista referia-se ao projecto de superação da história – a dissolução de tudo o que fosse resistente ao tempo. Pretendia-se com isto destronar o passado, sobretudo a ‘tradição’ (o conjunto de sedimentos e resíduos do passado no presente). Embarcámos nesta quimera não para nos livrarmos definitivamente dos sólidos, mas sim para abrir espaço novos e melhores sólidos, de preferência perfeitos.
Os tempos modernos encontraram os sólidos pré-modernos num estado avançado de desintegração. Um dos motivos mais fortes para a sua dissolução foi a vontade de descobrir e inventar novos sólidos. Sólidos que durassem, de confiança e que transformassem o mundo em algo previsível e controlável.
Tanto liberais como marxistas, os projectos de emancipação modernos procuram dirigir a humanidade em direcção a ideais de liberdade. Acontece que tais projectos, no seu desenvolvimento, acabam por dar primazia à esfera económica, separando-a dos restantes elementos do ‘real’.
Houve uma transformação a partir de uma concepção do eu, própria das relações de dádiva, em direcção a outra, própria das relações mercantis. O que acontecia no passado era que se pensava no eu enquanto situado, definido pelas relações em que existia. O eu era uma localização numa estrutura ou teia de relações. Consequentemente, os motivos das pessoas brotavam das suas localizações. Com esta compreensão do eu, os seres humanos identificavam-se mutuamente em termos das suas posições respectivas na grelha social, e cada um assumia que o outro fosse ‘sincero’ acerca de não ocultar a sua posição. Gradualmente, um ponto de vista diferente ganhou força. O eu passou a ser a consciência individual enquanto entidade autónoma e irredutível. Construir o eu como algo autónomo é assumir que é individual e autocontido. Consequentemente, o indivíduo tornou-se na única fonte válida de motivação. Através desta compreensão do eu, as pessoas identificam-se em termos das suas vontades individuais. Enquanto o ponto de vista antigo sobre o eu identifica os seres humanos em termos da sua localização numa teia de relações sociais, não nega que o eu é algo individual. Pode ser individual no sentido que cada pessoa é única. No entanto, não é individual no sentido de ser autocontido.
Carrier, na obra Virtualism – a New Political Economy (1998), introduz um conceito novo que serve para descrever a visão-do-mundo característica das sociedades ‘ocidentais’ contemporâneas. Virtualismo, diz ele, é pensar a realidade tendo como base cognitiva a gramática da Economia. Enquanto nos contextos pré-modernos o pensamento é estruturado pela teia de relações sociais que envolve cada um, nas sociedades modernas a Economia impôs a sua epistéme ao mundo, colonizando todas as esferas do social. Basta recordar que o conceito que temos de liberdade (entendida como individual) é deriva de um ideal americano de mercado. Com o crescimento do poder americano desde a Segunda Guerra Mundial ‘o Mercado’ tornou-se mais global. A política de governação americana ajudou a pressionar instituições por todo o mundo a conformarem-se ao seu modelo. O modelo cultural do Mercado reside em certas assunções. Talvez a mais básica dessas assunções é a de que o mundo é constituído por indivíduos livres. A crença que esses indivíduos são livres significa que eles são a única fonte e os juizes dos seus desejos, e que esses indivíduos não estão sujeitos a constrangimentos para além daqueles que aceitam voluntariamente. Não há, consequentemente, nenhuma estrutura imperativa além do indivíduo, nenhuma grelha moral operativa que seja definitiva. Associado a este individualismo está a assunção de que as razões que levam as pessoas a desejar isto ou aquilo são irrelevantes. Tudo o que interessa é que elas desejam, com o corolário que deviam satisfazer esse desejo caso possam. A outra assunção chave é que as pessoas são pragmaticamente racionais. Essencialmente isto quer dizer que elas querem mais por menos.
Porque é que Carrier chama a esta visão do mundo virtualismo? Porque ela deriva não das relações sociais que acolhem cada um mas sim de um modelo colonizador, ‘artificial’ na sua origem. O modelo advém da gramática da Economia tal como a realidade virtual é gerada nas entranhas metálicas de um computador. O modelo e a realidade virtual têm origem em mundos à parte da esfera das relações sociais.
Se bem que a análise de Carrier esteja imbuída de um platonismo pessimista, por dividir as coisas entre um mundo Real (verdadeiro) e outro Ideal (artificial e distópico), tem a vantagem de nos chamar à atenção no que diz respeito à natureza dos ideais modernos e suas repercussões nas relações de poder.
Regressemos ao problema de Bauman. Tudo o que é sólido mete medo. Isto porque hoje em dia o poder mede-se pela capacidade de mudança. Daí que decisões firmes, que acarretam consequências na posição que ocupamos na estrutura social, sejam de evitar. Há uma espécie de ruptura no conceito sartriano de liberdade. Para Jean-Paul Sartre o ser humano é intrinsecamente livre. Somos obrigados a fazer opções constantemente e a arcar com as consequências das nossas escolhas. Portanto, a capacidade de escolher e a consequência fazem parte de uma unidade inerente à liberdade humana. O poder de fazer opções é, em termos de valor, igual á liberdade de sofrer as consequências destas. Acontece que a modernidade separou estes dois termos. Para não abdicarmos da nossa flexibilidade, as decisões não podem ter consequências sólidas, isto é, que resistem à passagem do tempo. E isto é válido tanto para as opções da nossa vida individual, como para decisões de carácter nacional, etc. Recordo que as guerras hoje em dia são feitas “sem vítimas”. Do ‘lado de cá’ (América e aliados) ninguém morre uma vez que tudo é feito através dos bombardeamentos da aviação. Não há soldados no terreno (e quando há não os mostram). Como os bombardeamentos são ‘cirúrgicos’ (é o que nos dizem no telejornal) também não há vítimas humanas do ‘lado de lá’. Portanto, hoje em dia, os americanos e aliados só fazem guerras virtuais. Ser responsável por uma decisão que acarrete consequências é a pior coisa que nos pode acontecer. No século XXI, uma guerra tipo Vietname (com o consequente síndroma do ‘bodybag’) atiraria o político mais carismático para os confins do universo social.
Quando tratamos de práticas discursivas a realidade não é muito diferente. Não convém aderir a paradigmas sólidos, quanto mais se defender uma tese maior é a probabilidade de nos afundarmos com ela.

Referências : BAUMAN, Zygmunt, 2000, Liquid Modernity, Polity Press.
CARRIER, James, 1998, Virtualism: a new political economy, Berg

segunda-feira, fevereiro 06, 2006

Acerca do Juízo Estético

Lembram-se, concerteza, do filme A Mosca. Neste filme, acho particularmente interessante uma cena em que o cientista (Jeff Goldblum) se encontra frustrado com o facto da sua máquina de teletransporte não conseguir reconstruir um organismo de forma coerente. O problema estava no computador que não tinha a capacidade extrair um significado holista, um sentido, do amontoado de fórmulas que compõem a química de um organismo. Só depois de fazer amor é que o cientista tem um insight e diz uma frase espantosa : «O computador tem que sentir o gosto da carne».
Porque razão o computador não conseguia "sentir" a carne? O que haverá afinal de característico no juízo estético?
Na minha opinião, o juízo estético vai buscar um tipo particular de inteligência que é a intuição. Ora a intuição é uma adaptação cognitiva que visa dar conta de realidades complexas para as quais os aforismos racionalistas são limitados. O que eu quero dizer é que os mecanismos conscientes da razão não conseguem lidar com realidades com um carácter caótico, isto é, sistemas extremamente complexos. Como o processo de elaboração de um aforismo depende de um paradigma orientador e de um método mais ou menos rígido, quando a realidade sensorial “não encaixa” dentro de um esquema conceptual, a razão vê-se confrontada com o absurdo. Daí que as artes têm maneiras de lidar com o problema da contradição que escapam às chamadas “ciências exactas”. O paradoxo (termo muitas vezes utilizado pejorativamente para exprimir a impotência perante dois paradigmas contraditórios) e o oxímoro (a contradição utilizada com fins estilísticos) são recursos utilizados em áreas do conhecimento que não procuram a lógica linear do racionalismo. É de notar que mesmo o conceito de antítese (utilizado na fenomenologia hegeliana) aparece num contexto que procura um telos, procura ir em direcção a algo, ainda que o movimento seja dialéctico. O problema é que a razão consciente não consegue dar sentido a sistemas caóticos. É aqui que surge o juízo estético. O juízo estético não procura o aforismo, procura um “sabor”, um “gosto” cuja representação não pode ser operacionalizada pela construção de uma lógica linear. A representação do “infinitamente complexo” recorre a mecanismos de evocação como a metáfora. O “infinitamente complexo” não pode ser explicado, tem que ser evocado.

Sugestões (para quem ainda não conhece)

http://www.marxists.org/ (marxists Internet archive – Trata-se de um sítio na web com milhares de textos de referência na história política, não apenas marxistas.)
http://www.pantheon.org/ (Encyclopedia Mythica)
http://www.emule-project.net/ (O programa de partilha de ficheiros mais popular.)
http://en.wikipedia.org/wiki/Main_Page (Wikipedia - A Enciclopédia mais popular da Internet, sempre actual.)
http://www.archive.org/ (Internet Archive – Um arquivo riquíssimo, sempre em construção, com filmes, textos, ficheiros áudio, software… Mais um projecto dedicado ao acesso universal do conhecimento humano.)
http://web.archive.org/collections/web.html (WayBackMachine – o museu da Internet)
http://alfarrabio.di.uminho.pt/vercial/programas.htm (Projecto Vercial – a maior base de dados sobre literatura portuguesa)
http://ciberduvidas.sapo.pt/ ("carácter" ou "caracter"? "Carácter", sem dúvida! Confere nas ciberdúvidas da Língua Portuguesa.)
http://www.linux.org/ (Para quem se interessa pelo pinguim ou está curioso.)

Alfred Gell e o Mundo de Trás-Para-a-Frente

Hoje voltei a ler o texto que me inspirou ao longo de anos: “The technology of enchantment and the enchantment of technology” de Alfred Gell. Voltar a ler o texto fez-me regressar ao essencial, ao tema da arte. Em vez de me perder em especulações de teor religioso e poético, Gell recordou-me o que era o “encanto”. Aquilo que ele chama “a tecnologia do encantamento” refere-se ao processo de ver o mundo de uma forma “encantada” através da obra de arte. Esta ‘visão de deslumbramento’ obtém o seu poder do reconhecimento, por parte do espectador, de que existe um processo técnico pericial que o transcende. Isto é, a obra de arte é um índice. Evoca um processo técnico. Houve alguém que a produziu, que possui um poder técnico que nos transcende. É este conceito de poder técnico transcendente que constitui o “encantamento” que a arte exerce. Portanto, perante uma obra nós somos levados a ver o mundo “encantado” graças à evocação de um processo ‘encantado’.
Este texto fez-me lembrar uma entrevista que assisti na televisão ao escritor Lobo Antunes. A dada altura ele recordava o princípio da sua carreira como psiquiatra. Segundo parece, o seu primeiro ’paciente’ foi um indivíduo diagnosticado de “esquizofrénico’ que, apesar de medicado, se arrastava taciturno pelos cantos do hospital. Certo dia, conta o escritor, o dito paciente melhorou, desabafando. Então, disse a seguinte frase : «O mundo foi feito de trás para a frente». Lobo Antunes comentou : «Ele tinha toda a razão : o mundo foi feito sem se notar as costuras». É esta última frase que relaciono com o texto de Gell. O encantamento que os objectos produzem sobre nós deriva da ideia de um criador (ou “Criador”) que, por magia (não sabemos como o fez, mas temos consciência que tem um poder superior ao nosso) deu origem a um efeito, que, por sua vez, não é desconstruível e, por isso, é transcendente.

Arte e Polissemia

Por polissemia entendamos a qualidade que faz com que uma única forma possa ter diversos sentidos, consoante o contexto de utilização e a sua inserção em esquemas estilísticos (Yule : 1985).
O que faz com que a linguística (ou linguísticas, tendo em conta a diversidade de escolas) se debruce sobre o problema da dinâmica do sentido (ou significação) deve-se, por um lado, à rejeição de modelos antigos com uma perspectiva linear ou estrutural (cujo modelo de análise não dava importância ao contexto social nem à passagem do tempo [acrónicos quando o problema do tempo nem se punha, ou sincrónicos quando se pretendia “congelar” a linguagem dando origem a uma espécie de “fatia” do eixo temporal]), e, por outro, ao facto das ciências do comportamento terem vindo a adoptar um paradigma novo, cunhado de cognitivista, que penetrou nas diversas áreas do conhecimento humano.
A palavra “arte” (do latim ars, tendo como significado base a ideia de “técnica”) engloba, nos dias de hoje uma variedade de sentidos quase todos ligados à noção de perícia técnica. As diferentes conotações desta palavra são produto da transformação das diversas ideologias que procuraram dar conta do trabalho humano (por trabalho entenda-se : o investimento físico, mental e emocional dirigido à transformação do mundo).
Arte, durante a história ‘ocidental’ que antecede o período moderno, servia para classificar tanto a actividade dos artesãos (qualquer forma de trabalho manual que exigisse algum treino prévio) como o trabalho dos ‘mestres’ dirigido à produção exclusiva de obras com um objectivo essencialmente estético. Compreendamos que as noções de arte e artesanato não constituíam domínios distintos. A separação destas duas esferas surgiu posteriormente com o advento da modernidade.
Aquilo que Arthur Danto(1993) chama mundos da Arte (Art Worlds), ou seja o conjunto de agentes (produtores, gestores, comerciantes e públicos) que dão vida social aos objectos criados com fins estéticos, é produto de uma transformação histórica encaminhada para a constituição de um terreno de pura criatividade, uma arte livre (livre de pressões políticas, económicas e, sobretudo, conceptuais).
Uma vez que o objectivo deste texto é o de demonstrar a polissemia da palavra, eu irei desligar-me do conceito de arte como esfera autónoma (as “Belas Artes”) para me concentrar nos sentidos utilizados por quem não está inserido nos Mundos da Arte de que fala Danto. Esta opção prende-se com o facto dos intervenientes dos mundos da arte não concordarem com um sentido para a expressão “arte”, recusando muitas vezes utilizá-la. Hoje em dia não há “artista” que diga “o que é arte”. Como tal, dirijo a minha atenção para os significados que todos nós utilizamos no quotidiano.
Na expressão “Aquele sujeito tem muita arte!” ou “X é um grande artista!” podemos encontrar um novo sentido para a palavra em causa. Trata-se de arte entendida como astúcia, manha. Estamos perante um processo no qual uma lógica inerente à arte (o dom de dominar uma técnica) é transferido para um novo contexto, dando origem a um sentido particular. Este sentido deve parte da sua força à ironia com que a expressão é proferida, mas o recurso fundamental neste processo é a metáfora.
A metáfora tem a ver com o entendimento de uma entidade partindo da perspectiva de outra. Neste sentido, pode dizer-se que todo o conhecimento é metafórico. Trata-se de um instrumento ilustrativo que envolve a deslocação de um termo pertencente a um dado sistema de sentido em direcção a um novo sistema (do grego metaphorá, «transporte») (Tilley:1999:p.4). Tilley (1999 : p.7) expõe duas maneiras de abordar a metáfora. Segundo a teoria da inexpressividade, as metáforas conferem forma às ideias e descrições do mundo, algo impossível através de uma linguagem literal. As emoções e os sentidos que comunicamos aos outros, quando colocados explicitamente, banalizam-se. Por outro lado, a teoria da compressão sugere que a metáfora providencia comummente a mais simples forma de comunicação entre indivíduos que partilham uma estrutura cognitiva/cultural. A metáfora permite expor disposições complexas de ideias por meio de breves enunciados.
Uma das mais importantes funções da metáfora no processo de cognição é facilitar a produção de novos sentidos. É por via da metáfora que ligamos objectos, acontecimentos e acções aparentemente (i.e., ao nível da percepção sensorial) desconexas. Por exemplo, conceber os corpos humanos como contentores (de fluidos e substâncias, com orifícios – entradas e saídas) pode ser o ponto de partida para examinar relações simbólicas entre o corpo e outro tipo de contentores como vasos ou potes. Para um ponto de vista empirista/objectivista do mundo um corpo é um corpo e um vaso é um vaso. É a metáfora que fornece o meio de transpor a visão fragmentada. Surgem então elos no seio da diversidade cósmica.
As metáforas dão origem a inovações semânticas porque criam informação sobre o mundo. Desempenham o papel de estimular a mente para novos pensamentos porque nos levam a perceber semelhanças que anteriormente nos escapavam. Novas metáforas ajudam a romper com as percepções comuns e permitem compreender algo novo e inesperado. (Tilley:1999:p. 8, 15).
Quando se procura elogiar alguém pelo seu talento, habilidade ou jeito, a palavra arte surge como sinónimo (do grego, synónymos «que tem o mesmo nome»), ou seja, as palavras têm um significado idêntico ou muito aproximado. Para Yule (1985 : 118) sinónimos são duas ou mais formas com um significado intimamente relacionado e que podem substituir-se mutuamente sem que se altere o sentido da frase.
Por outro lado, quando se procura denegrir as capacidades de outrem, como na frase “Tens cá uma arte!”, estamos perante a ironia, figura de estilo que veicula um significado contrário daquele que deriva da interpretação literal do enunciado.
Como já referi, a palavra arte incorpora uma lógica que aponta para o domínio de uma determinada técnica. Se bem que, no seu significado base, se entende tal domínio tendo em vista a produção de objectos materiais, o sentido de “arte” aparece muitas vezes desligado da componente artesanal. Desligado desta quer dizer apenas destreza, aptidão... Sinónimos que, representando uma lógica (e já não uma actividade concreta) podem ser recombinados com outras actividades humanas, gerando novos sentidos.
A importância das figuras de estilo que recorrem à analogia é considerável. Strauss e Quinn (1997) distinguem analogia e metáfora de um ponto de vista cognitivo. Para estas autoras, o pensamento é inerentemente analógico, isto é, funciona por conexões de ideias ou lógicas. Para pensar uma dada ‘coisa’ comparamo-la com as propriedades de uma outra. Quando se trata de realidades mais complexas, normalmente sistemas, recorremos à comparação de lógicas (ou estéticas, complexos semânticos). A analogia, para Strauss e Quinn opera num nível interno, no que se refere aos processos mentais interiores do sujeito. E é isto que a distingue da metáfora, que é utilizada para comunicar, para evocar estruturas cognitivas ao nível do receptor. Uma vez que partilhamos as mesmas estruturas dentro do grupo a que pertencemos – o contexto cultural – as metáforas que produzimos apelam ao receptor a construção do sentido que pretendemos transmitir. O problema desta distinção é que olvida outros recursos importantes na comunicação, como a metonímia. A metonímia (do grego metonymía, «mudança de nome», pelo latim metonymîa,») opera pela alteração do sentido natural dos termos, pelo emprego da causa em vez do efeito, do todo pela parte, do continente pelo conteúdo, ou vice-versa.
O que me parece importante clarificar são noções como : polissemia – a qualidade dinâmica que as palavras apresentam que lhes permite, mantendo a mesma forma apresentar diversos significados; metáfora - tropo em que a significação natural de uma palavra se transporta para outra em virtude da relação de semelhança que se subentende; sinonímia – a qualidade que diferentes formas apresentam de possuir o mesmo sentido; e a metonímia – recurso de estilo que altera o sentido natural dos termos, substituindo o todo pela parte, a causa em vez do efeito, etc.
Referências:
DANTO, Arthur, 1993 (Abril), “Art after the End of Art” In Artforum International, nº8, Los Angeles.
STRAUSS, Claudia & QUINN, Naomi, 1997, A Cognitive Theory of Cultural Meaning, Cambridge University Press, Cambridge.
TYLLEY, Christopher, 1999, Metaphor and Material Culture, Blackwell, Oxford.
YULE, George, 1985, The Study of Language, Cambridge University Press, Cambridge.