segunda-feira, fevereiro 06, 2006

Alfred Gell e o Mundo de Trás-Para-a-Frente

Hoje voltei a ler o texto que me inspirou ao longo de anos: “The technology of enchantment and the enchantment of technology” de Alfred Gell. Voltar a ler o texto fez-me regressar ao essencial, ao tema da arte. Em vez de me perder em especulações de teor religioso e poético, Gell recordou-me o que era o “encanto”. Aquilo que ele chama “a tecnologia do encantamento” refere-se ao processo de ver o mundo de uma forma “encantada” através da obra de arte. Esta ‘visão de deslumbramento’ obtém o seu poder do reconhecimento, por parte do espectador, de que existe um processo técnico pericial que o transcende. Isto é, a obra de arte é um índice. Evoca um processo técnico. Houve alguém que a produziu, que possui um poder técnico que nos transcende. É este conceito de poder técnico transcendente que constitui o “encantamento” que a arte exerce. Portanto, perante uma obra nós somos levados a ver o mundo “encantado” graças à evocação de um processo ‘encantado’.
Este texto fez-me lembrar uma entrevista que assisti na televisão ao escritor Lobo Antunes. A dada altura ele recordava o princípio da sua carreira como psiquiatra. Segundo parece, o seu primeiro ’paciente’ foi um indivíduo diagnosticado de “esquizofrénico’ que, apesar de medicado, se arrastava taciturno pelos cantos do hospital. Certo dia, conta o escritor, o dito paciente melhorou, desabafando. Então, disse a seguinte frase : «O mundo foi feito de trás para a frente». Lobo Antunes comentou : «Ele tinha toda a razão : o mundo foi feito sem se notar as costuras». É esta última frase que relaciono com o texto de Gell. O encantamento que os objectos produzem sobre nós deriva da ideia de um criador (ou “Criador”) que, por magia (não sabemos como o fez, mas temos consciência que tem um poder superior ao nosso) deu origem a um efeito, que, por sua vez, não é desconstruível e, por isso, é transcendente.

Sem comentários: