domingo, maio 09, 2010

Para quem é autodidacta

Se o estimado visitante é uma das muitas pessoas que procura cultivar o espírito por iniciativa própria, ou seja sem tutores nem percursos escolares ou académicos, este artigo é para si. A maioria dos autodidactas exerce a sua actividade de aprendizagem adquirindo livros sortidos e, eventualmente, pedindo informações às pessoas com quem se relaciona. Esta actividade é extremamente estimulante e confere liberdade a quem a pratica. Demasiada liberdade, como verá.
Ser responsável pela sua própria formação acarreta vários riscos. Pode ficar com lacunas importantes, adquirir conhecimento desactualizado, formular conceitos fantasistas, etc. O pior que lhe poderá acontecer é ter a sensação que possui um vasto conhecimento porque leu muitos livros ou porque tem a cabeça cheia de ideias. A vaidade intelectual, o chamado pedantismo, é dos piores inimigos de quem quer aprender.
A primeira coisa que deve ter em mente é a distinção entre aprender e armazenar conhecimentos. Se você quer ser um erudito, um armazém de “factos”, então este artigo não é para si. Há uma metodologia específica para adquirir Cultura Geral, muito útil a quem, por exemplo, deseja ganhar dinheiro em concursos televisivos.
Aprender é, acima de tudo, a transformação de um prisma. Quem aprende modifica a sua maneira de ver o mundo. Adquire novos esquemas interpretativos que lhe permitem decifrar o real de forma mais precisa. Por isso, aprender é tornar-se mais competente no processo de compreensão. Para aprender é necessário ler livros ou ir à escola? Claro que não. Desde que nascemos, tomamos contacto com o que nos rodeia e vamos adquirindo novas formas de classificar a realidade, interpretando-a.
Quando a aprendizagem foca o conjunto de conhecimentos instituídos disciplinarmente pelas Ciências e Humanidades, a forma como se transmite a informação tem metodologias próprias e obedece a critérios diferentes do senso comum. Não convém que seja uma aventura solitária, senão o explorador arrisca-se a ser engolido pela própria Natureza que deseja desbravar.
Sejamos optimistas e acreditemos que há navegadores solitários que conseguem chegar em segurança ao destino. Para ser um autodidacta bem-sucedido precisa de ter em conta vários aspectos.
Quando alguém entra numa livraria, a sua atenção recai sobre títulos e temas para os quais já está sensibilizado. No caso de um leigo que procura bibliografia sobre uma determinada matéria, os seus sentidos serão estimulados pelos assuntos que consegue compreender e, sobretudo, pelos conteúdos que concordam com a aprendizagem do senso comum, operada pelos meios de comunicação social, sociabilidade, etc. Temas que desconhece por completo não lhe abrem o apetite. Esta situação é uma das principais responsáveis pelas lacunas que a maioria dos autodidactas demonstra. O autodidacta só lê o que lhe apetece e não o que lhe seria mais útil.
Em segundo lugar temos o problema do método. A ordem de leitura não deve ser arbitrária e muito menos aleatória. Se você se interessa por um determinado autor, nunca pegue nas suas obras indiscriminadamente. Se o fizer, corre o risco de não compreender a evolução do pensamento desse autor e de não o conseguir enquadrar no contexto a que ele pertence. O ideal seria pedir ajuda a alguém que tem formação na área, no sentido de lhe indicar quais as obras que você deve ler e qual a ordem de leitura. Se não puder obter a tutória de um amigo ou conhecido, pegue numa enciclopédia e procure as entradas que dizem respeito ao tema. Regra geral, as enciclopédias oferecem uma visão panorâmica sobre os assuntos, que lhe permitirão inicialmente encarar a temática de forma abrangente e inserida num contexto, para que posteriormente possa ir estreitando as áreas de interesse. Portanto, um artigo numa enciclopédia pode ser uma introdução valiosa ao tema que pretende estudar e até um guia, uma vez que fornecem informações adicionais, como indicações para outras entradas ou sugestões de leitura.
O importante é começar com uma boa introdução, uma leitura que dê uma perspectiva geral do assunto e que o sensibilize para os diversos aspectos que constituem toda a complexidade da área em estudo. Um bom edifício dispõe sempre de uma antecâmara suficientemente ampla que permita aos recém-chegados visualizar a estrutura interna do prédio e, com a devida sinalização, evita que os visitantes percorram caminhos errados.
Outro aspecto a ter em conta é a credibilidade das obras. Não é por estar numa livraria frequentada pelas elites que um livro adquire qualidade. Comece por folhear a obra e veja se está bem organizada. O índice consegue ser funcional, ou seja, ajudar o leitor a orientar-se no texto? O autor está bem referenciado? Consegue-se perceber quem é, o que fez para chegar àquela obra, que trabalho desenvolveu dentro da área disciplinar? As consultas citadas pelo autor estão bem referenciadas? Há anotações? Quem tem prática a escolher livros já conhece as características que dão credibilidade a uma edição. Todas se resumem a uma qualidade: rigor. Boas edições estão bem organizadas e pautam-se pelo rigor aos mais ínfimo pormenor. Fuja de livros com títulos sensacionalistas como «A História misteriosa de…» ou «Grande livro do…», que procuram chamar a atenção dos mais ignorantes.
Quando se trata de livros científicos, o rigor é ainda mais necessário. Não corra riscos. Procure alguém com formação científica na área e peça-lhe ajuda. A data da edição também é importante quando estamos a lidar com um domínio científico que está em acelerada actualização e cujos conhecimentos se tornam desactualizados rapidamente. Hoje em dia, quase todos os campos científicos estão em constante mutação e, por isso, o conhecimento que era aceite há 3 anos deixou de o ser ontem à tarde.
Nunca compre livros sobre assuntos muito diversos de uma assentada. Um livro não é comparável a um fruto. Por isso, adquirir bibliografia não é o mesmo que preparar uma salada de fruta. Concentrar a sua atenção em áreas muito distintas pode ser prejudicial até para a sua saúde mental. Não estou a brincar. A nossa mente é um engenho de produzir analogias . Se você ler agora um livro sobre a organização social das abelhas e logo a seguir outro sobre a vida de Dostoievski, a sua mente irá necessariamente relacionar informação proveniente das duas obras. O resultado é o que acontece a muitos autodidactas: “descobrem” que têm teorias absolutamente revolucionárias, capazes de mudar o mundo. Outro dos “sintomas” característicos manifesta-se pelo carácter fragmentário do conhecimento. É vê-los nos cafés a debaterem com os amigos, saltitando de assunto em assunto, com argumentos de 15 segundos. Tornam-se incapazes de desenvolver um argumento, mas muito populares em tertúlias ou conversas de café. O problema da “Cultura Geral” é que se manifesta sabendo um pouco de tudo. Só que na maioria das vezes, o pouco é mesmo muito pouco. Eu chamo a isto “o intelecto fragmentado do autodidacta”.
Não queremos que a nossa mente seja uma manta de retalhos, mas sim um instrumento cada vez mais aperfeiçoado e capaz de interpretar a realidade.
Ponha à prova os seus conhecimentos. Desenvolva um argumento e coloque-o perante uma comunidade que se dedica a estudar o mesmo assunto. Os outros membros indicar-lhe-ão os erros de estudo que eventualmente terá cometido e colocá-lo-ão perante argumentos que contradizem o seu. O valor de uma teoria mede-se pela capacidade de sobrevivência perante a crítica. Estudar em comunidade também lhe permitirá beneficiar da ajuda de terceiros. As comunidades de conhecimento servem para que os membros se ajudem mutuamente.
Nunca tema as críticas. São elas que o ajudarão a evoluir. Não procure elogios. O ego e o conhecimento são inimigos radicais. A vaidade levá-lo-à à ilusão do saber, à cegueira do diletante.
O estimado visitante não quer ser, de certeza, como uma personagem de Sartre da obra A Náusea. O Autodidacta de Sartre pretendia ler os livros todos que havia numa biblioteca pública, por ordem alfabética...

1 comentário:

Anónimo disse...

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