sexta-feira, fevereiro 10, 2006

Comportamentos de Consumo: "Ir às compras"

Há pouquíssimas análises sobre o tema “fazer compras”. As práticas e comportamentos deste domínio têm sido invisibilizadas pela psicologia e ciências sociais, havendo algumas excepções. Parece que “ir às compras” é um tipo de acção sem qualquer importância, um aspecto ligado às idiossincrasias do indivíduo. Para muitos, é simplesmente entrar numa loja para adquirir bens que necessitamos. O mecanismo da escolha parece reduzido a: gastar o menos possível e obter o máximo de qualidade ou de quantidade. Nada poderia estar mais longe da verdade.
Fazer compras serve um leque de objectivos sociais. Em primeiro lugar, contém um aspecto essencial que é o exercício da escolha. Durante o exercício da selecção, o ‘cliente’ apropria as mercadorias. Transforma-as, partindo da amálgama de objectos na loja em artefactos que reflectem o comprador e as relações sociais em que se insere. Os objectos passam a transportar uma identidade pessoal distinta e a incorporar relações sociais específicas. Este processo é exemplificado pela culinária familiar. Uma pessoa converte um conjunto de materiais crus, adquiridos como mercadorias, numa refeição que exprime e incorpora as relações que unem os membros da família. Em segundo lugar, deambular e ‘andar a ver’ as coisas é uma actividade prazenteira em si mesma, mesmo sem se chegar a comprar nada. Os clientes não estão à mercê do mundo dos objectos. Em vez disso, a sua interpretação cria um espaço que lhes confere uma sensação de liberdade. Este espaço não é independente de certos determinantes sociais. No entanto, o processo da sua criação permite certos graus de liberdade. O prazer da prática de fazer compras deriva da habilidade para estar sozinho ou acompanhado, de fazer as coisas sem urgência, sem a obrigação de comprar nada, de estar fora de casa e operar sem os constrangimentos das responsabilidades (Lehtonen & Maenpaa, 1997; Carrier,1993).
O prazer que existe na prática de fazer compras não deriva apenas da possibilidade de autonomia. Muitas vezes o aspecto agradável desta actividade é a sociabilidade que lhe está associada. Pode ser uma forma de passar algum tempo em companhia de outra pessoa. Providencia um meio para a criação e manutenção das relações sociais. Desta forma afecta o processo de identificação social. Enquanto se ‘faz as compras’, a comunhão pode ser edificada através da acção partilhada. Fazer compras cria uma grelha de acção segura e conveniente para um momento de descontracção partilhado.
Fazer compras tem a ver com fantasias relacionadas com a mudança de identidade individual. A loja é um teatro no qual se inventam e testam papeis. É a multidão e a sociabilidade dos locais públicos que criam o cenário de anonimato e que dão origem a uma forma de libertação relativamente aos constrangimentos quotidianos. O senso de não se ser bem quem se é, ou então, de não se ser ninguém (o que é muito provável que aconteça numa multidão) conduz a uma fantasia identitária. Isto implica não apenas que os clientes sejam como camaleões no que diz respeito à sua identidade, mas que, tal como crianças, joguem voluntariamente com os seus papéis sociais. Fundamental à experiência de fazer compras é o prazer que deriva da potencial abertura e remoção das fronteiras do eu. Enquanto forma social, a prática de fazer compras é possível graças à emergência de um sujeito moderno com uma tendência para o sonho romântico; fazer de conta que se é outra pessoa.
Há ocasiões em que o ambiente de uma loja actua como uma forma de grelha destinada a alterar o comportamento dos clientes. De certa forma, o comprador veste uma nova pele na loja, experimentando uma personalidade ou estilo de comportamento. Tal como existem categorias de “vestir a rigor” ou “desportivo”, conceitos que se opõem relativamente ao vestuário, também há diferentes expectativas acerca da forma como cada um se comporta dentro de um estabelecimento comercial, consoante se trate de um bar ou de um loja de roupa, por exemplo.
Um antropólogo (Daniel Miller, 1997) compara o prazer de gastar dinheiro à excitação sexual. No acto de comprar um artigo há uma sensação de poder e de propriedade que alivia a tensão e produz um sentimento efémero de realização pessoal. Se bem, que gastar dinheiro tenha a sua própria sensualidade, esta comparação parece-me excessiva. Além disso, há outras sensações envolvidas na aquisição de bens. Muitas vezes, o consumidor investe numa acumulação gradual de objectos e o idioma dominante provém de um senso de propriedade e descendência e não da sexualidade; o objectivo é o armazenamento ou coleccionismo e não a fruição.
A forma como se gasta o dinheiro merece ser analisada. Há determinados bens de consumo nos quais a poupança é fundamental enquanto noutros é completamente irrelevante. Porque é que o cliente de um hipermercado se preocupa em “descobrir” as marcas mais baratas quando vai comprar papel higiénico, leite, detergente e pasta de dentes? Quando compra bilhetes para assistir a um concerto ou quando vai jantar fora com os amigos o dinheiro parece que já não é tão importante… A resposta a esta questão está na forma como o consumo se relaciona com o Eu (ou Self, se preferirem a expressão em inglês). As actividades de consumo ligadas à diversão e ao prazer reforçam aspectos no indivíduo tais como auto estima, auto confiança e condição anímica. O reforço do Eu implica um aumento de expressividade e da sensação de realização pessoal. O indivíduo tende a procurar o prazer, “abrindo-se” à expressividade. Com esta “abertura”, as condicionantes sociais (neste caso, financeiras) passam para segundo plano.
No caso dos comportamentos que visam despender menos dinheiro, o processo é de retenção do prazer. Na poupança há uma lógica centrípeta (dirigida para dentro). O importante é acumular.
Estes dois princípios, o do consumo expressivo (dispendioso) e o da retenção, andam quase sempre articulados. A expressão “poupar numas coisas para gastar noutras” é disso exemplo. O princípio da retenção oferece a estabilidade e o enquadramento para que os sujeitos vivam “habitualmente”, com serenidade e com rotinas, uma vez que todos necessitamos de uma estrutura social com um grau de confiança elevado. Por sua vez, o princípio do consumo expressivo providencia uma fuga à monotonia e o libertar das tensões que foram acumuladas pelo princípio da retenção.
Quando uma pessoa vai fazer compras a um supermercado é muito comum vermos os dois princípios em acção. O consumidor adquire diversos produtos chamados de “primeira necessidade” (higiene, alimentação, etc) e acaba por complementar esta tarefa com a concomitante aquisição de chocolates, bolachas ou outros doces. Este comportamento, para além de articular os princípios de retenção com o reforço do Eu, reflecte uma outra articulação: a lógica sacrifício / compensação. Digamos que o comprador compensa o seu “trabalho” de fazer compras adquirindo certos bens destinados ao seu prazer pessoal.
Há um outro aspecto dentro do mesmo tema (aquisição de bens) que merece ser aqui tratado: a forma como as identidades de género estruturam as práticas e discursos de consumo.
A prática de fazer compras na sociedade moderna (ocidental e industrializada) é uma actividade que surge associada ao género. Especificamente, é encarada como algo relacionado com a esfera feminina. Consequentemente, quando as crianças são socializadas nos seus papeis de género, aprendem, através do processo de aquisição da sua identidade, que fazer compras faz parte das actividades que ajudam a definir o papel da mulher, e, especialmente, o papel distinto da doméstica. Por contraste, o papel do homem adulto é definido em termos do trabalho assalariado, i.e., como “ganha-pão”e, desta forma, é identificado com actividades bastante desligadas do consumo.
Um aspecto importante que permite aos homens fazer compras sem pôr em perigo a sua imagem masculina é a presença de uma ideologia. Esta ideologia distingue as suas compras enquanto actividade das formas femininas, protegendo a sua identidade de género. Contém um contraste formulado em termos de uma dicotomia entre o instrumental contra o expressivo. Assim, os homens são inclinados a encarar as compras como uma actividade puramente dirigida à aquisição, relacionada com a satisfação de necessidades. As mulheres, por sua vez, vêm-nas como uma actividade que contém prazer em si mesma e que se relaciona com a gratificação de desejos. Isto é dizer que os homens presumem que a actividade em causa apenas ocorre quando se estabeleceu a existência de uma necessidade, não vendo qualquer valor intrínseco na actividade em si. As mulheres, por outro lado, apesar de reconhecerem o papel da satisfação de necessidades, estão também inclinadas a ver a actividade como algo que tem um valor inerente, independentemente do facto de se comprarem ou não as mercadorias.
Os homens, seja por causa da sua socialização ou devido ao seu tradicional maior envolvimento no mundo do trabalho assalariado, estão predispostos a encarar o consumo como uma actividade subordinada a esta esfera, mesmo sendo “trabalho feminino”. Consequentemente, eles não só não esperam que seja agradável mas presumem que os padrões sejam os mesmos do mundo do trabalho (a racionalidade e a eficiência). Isto conduz à tendência dos homens de definir esta actividade através da ideia de necessidade. Por contraste, as mulheres tendem a seguir um ponto de vista relacionado com o lazer. Inclinam-se a definir a actividade como algo agradável e a rejeitar qualquer referência puramente instrumental ou utilitária.
A ideologia masculina não apenas oferece a possibilidade dos homens fazerem compras sem porem em causa o seu senso de género, mas providencia também argumentos para descrever o estilo feminino de levar a cabo esta tarefa: “ é irracional”, reforçando o estereótipo masculino que diz que as mulheres têm uma conduta mais impulsiva, emotiva e desligada do raciocínio. Empregando o modelo masculino como um padrão, os homens conseguem criticar as mulheres por: (a) despenderem demasiado tempo nesta actividade, (b) visitar demasiadas lojas, (c) serem incapazes de se decidir quanto a produtos alternativos, e (d) porem fim a uma “excursão” a diversas lojas graças à compra do primeiro artigo que viram.
Em resposta, as mulheres empregam a sua concepção de fazer compras como uma ideologia; justificando a sua própria conduta e negando a legitimidade da masculina. As mulheres comummente queixam-se que os homens: (a) praticam pouco a actividade, (b) quando fazem compras vão a poucas lojas, (c) não sabem o que querem, (d) muitas vezes compram a primeira coisa que vêm com a pressa de saírem da loja e, (e) não estão a par das mercadorias nem dos preços destas.
Desenvolvendo um ponto de vista especificamente masculino relativamente à prática de fazer compras, em contradição com o feminino, os homens concretizam duas acções. Primeiro, providenciam uma racionalidade que lhes permite fazer compras sem comprometer a sua identidade de género. Segundo, articulam uma ideologia que serve para condenar e subestimar a conduta feminina numa esfera em que elas predominam manifestamente. Fazendo-o, os homens evitam ter que reconhecer o facto de que as mulheres não apenas desempenham esta tarefa de consumo, mas que também manifestam uma perícia superior neste processo. Empregando a ideologia masculina como base para uma crítica, a perícia feminina nesta esfera é efectivamente subestimada, e, como tal, a sua conduta é representada sob a forma de uma confirmação do estereótipo masculino. Desta forma, “a importância e competência das mulheres neste campo – que de outra forma poderia ser vista como uma ameaça à dominação societal e cultural masculina – é castrada (Campbell, 1997).

Referências : CAMPBELL, Colin, 1997, “Shopping, Pleasure and the Sex War” In The Shopping Experience, Sage, London.
LEHTONEN , Turo-Kimmo & MAENPAA , Pasi , 1997 , “Shopping in the East Centre Mall” In The Shopping Experience , Sage , London , T. O. , N. D..
CARRIER , James , 1993 , “The Rituals of Christmas Giving” In Unwrapping Christmas , Clarendon Press , Oxford.
MILLER, Daniel, 1997, “Could Shopping Ever Really Matter ?” In The Shopping Experience , Sage , London , T. O. , N. D..

1 comentário:

Anónimo disse...

Who knows where to download XRumer 5.0 Palladium?
Help, please. All recommend this program to effectively advertise on the Internet, this is the best program!