segunda-feira, junho 05, 2006

A Fotografia e o Paradigma Visual da Modernidade

Na sociedade ocidental, tem-se vindo a encarar o sentido da visão como um acesso imediato ao mundo externo. Além disso, a habilidade visual misturou-se com as capacidades cognitivas. Por um lado, a visão é o sentido privilegiado e é tomada em conta como algo autónomo, livre e puro. Por outro, os símbolos visuais são experimentados como mundanos e necessariamente incorporados, e a sua interpretação é vista como ulteriormente contingente.

A forma como reflectimos acerca dos nossos próprios pensamentos na cultura ocidental é conduzida por um paradigma visual. Olhar, ver e conhecer tornaram-se acções interligadas. Então, o conceito de ideia, tal como o entendemos, está profundamente ligado às questões da ‘aparência’, da representação visual e da imagem. Os problemas que levanta o acto de produzir teoria sobre a visão, tendo esta como uma prática social, começam quando investigamos a génese do nosso pensamento no seio da cultura moderna ocidental. O projecto da filosofia moderna contribuiu claramente para a nossa actual condição de confusão relativamente à visão – o estabelecimento do ponto de vista comum de que as representações mentais são essencialmente reflexos de uma realidade exterior (Jenks :1995 : 1 , 2).

Qualquer tecnologia envolve o estabelecimento de uma relação particular com o mundo. Como tal, a fotografia constituiu-se sob a forma de um mecanismo de emoldurar, que, longe de ser uma mera técnica performativa, constitui uma parte essencial da definição da própria performance. A utilidade da metáfora da moldura, no que diz respeito à reflexão acerca da câmara – a tecnologia ubíqua que literalmente emoldura o mundo – é de grande importância. Tal como cada pintura veio a funcionar como uma ‘janela’ aberta a um mundo cenográfico, a moldura assegurou esta visão, demarcando a cena dos seus arredores. As molduras exerceram uma função organizadora que formalizou a centralidade do olho do espectador. Nem totalmente dentro, nem totalmente fora, a moldura é, paradoxalmente, tão essencial e constituinte como externa em relação à imagem. Esta liminaridade tem sido bastante acentuada pela câmara. A proliferação de imagens que se seguiu à industrialização da fotografia disturbou fatalmente a ideia de imparcialidade da moldura : à medida que cada acto de enquadramento começou a ser cada vez mais arbitrário, um espectro de contingência ameaçou a coerência de imagens que anteriormente tinha procurado um ponto de apoio na cuidadosa deliberação da sua composição. No entanto, foram as imagens em movimento que romperam definitivamente com a estabilidade da moldura, quando se tornou num ecrã atravessado por uma multiplicidade de aparências transientes e rápidos desaparecimentos (McQuire : 1998: 4 - 68).

Muitas teorias da modernidade foram informadas pela metáfora da câmara, ligada às possibilidades de visão ‘fora do corpo’ que providencia, às distâncias espácio-temporais que expande e às reivindicações de objectividade que autoriza. A capacidade de testemunhar as coisas de fora de todos os limites anteriores de espaço e de tempo ilumina o facto da câmara não só nos oferecer um meio de representar a experiência mas também de transformar a natureza da experiência e redefinir os nossos processos de entendimento (McQuire : 1998 : 1 , 2).

Devido ao facto da fotografia assumir a fidelidade da representação (ou a ideia de realismo, de algo que não é representado mas sim re-presentado), os primeiros contactos com o público habituado ao desenho, à pintura e à gravura, geraram reacções como se de magia se tratasse. Reconhecia-se que a fotografia excedia os paradigmas estabelecidos da representação. Uma nova era estava a nascer, graças à objectividade que a técnica fotográfica oferecia. O potencial valor da câmara fotográfica no que diz respeito à sua aplicação científica nunca foi questionado. A valorização da visão objectiva consistia em algo mais do que uma estratégia estética. Tomou também a forma de uma questão moral : a câmara era um meio ‘honesto’ e ‘fiel’, só com muito esforço podia mentir, ao contrário das manipulações perpetradas pelos pintores e desenhadores. “A câmara está para a representação como o parlamento está para a democracia representativa : a idealização da imparcialidade”.

Se existe um poder único que a câmara possuiu terá a ver com a intimidade entre imagem e referente, uma crença na existência do fenómeno fotografado. Se foi fotografado é porque estava lá!.

A divisão entre ‘essência’ e ‘aparência’ que foi durante muito tempo perene na filosofia encontrou reflexo na estética, na fractura entre o realismo ‘expressionista’ e o realismo ‘directo’. O facto destas duas partes reclamarem autoridade em relação à ‘realidade’ – dependendo do realismo ser concebido como uma reconstrução das aparências que penetra a ‘simples superfície’ das coisas, ou como uma fidelidade absoluta às aparências que revela verdades essenciais – é menos um sinal de confusão do que um espaço conflitual da sua emergência. A situação da câmara neste terreno é instrutiva. Apesar da fotografia ser mais rapidamente associada ao realismo ‘directo’, de forma a distingui-la da pintura e do desenho, uma divisão semelhante entre fotografia ‘artística’ e ‘documental’ tem estruturado o seu próprio domínio. O espaço conceptual marcado pela separação do domínio das imagens do da realidade determina a prática de representação como a expressão do real. Esta divisão definiu a economia de representação do século XIX que constitui o contexto inicial da câmara fotográfica (McQuire : 1998 : 16).

Se a câmara fotográfica parecia milagrosa no século XIX, se as suas imagens conseguiram saturar a consciência e o senso comum como um meio sem rival de manufacturar semelhanças com a vida, esta asserção foi alicerçada pela dominação que a perspectiva geométrica conseguiu na representação visual. O sistema ‘quattrocento’, que envolvia a colocação de objectos tridimensionais sobre uma superfície plana de forma a que a pintura afectasse o olho do observador de forma similar aos próprios objectos, consistia num protótipo crucial para um novo estilo de subjectividade : o sujeito representado como um observador distante. Foi esta matriz de identidade, baseada na separação da interioridade do observador da exterioridade do mundo-objecto, que a câmara intersectou e começou a transformar nos meados do século XIX. Uma fórmula poderosa para a estandardização visual : uma visão matemática que podia ser continuamente projectada no ‘real’ num contexto social que apontava a matemática como a medida universal do conhecimento. O sistema quattrocento construiu um novo espaço de representação : um espaço cenográfico que permitia aos artistas transcrever as aparências reais fazendo figurar elementos como a profundidade, a proporção, a textura e a densidade de forma a ‘colocar’ os objectos em cena para o olho do espectador. Literalmente, um espaço para colocar coisas em perspectiva. A utilização paródica da anamorfose, que se desenvolveu paralelamente à perspectiva geométrica, partiu do modelo quattrocento de pintura como ‘espelho da natureza’(McQuire : 1998 : 18 - 23).

O evento fundamental da era moderna é a conquista do mundo como perspectiva, determinando uma nova relação entre representação e subjectividade. Essencialmente, a perspectiva é uma forma de abstracção. Simplifica a relação entre o olho, o cérebro e o objecto. È um ponto de vista ideal, imaginado como percepcionado por um olho único, ausente de movimento, uma pessoa claramente desligada do assunto que percepciona. Transforma o espectador num deus, que se torna a pessoa para quem o mundo inteiro converge, The Unmoved Onlooker.

A perspectiva geométrica criou um espaço representacional simultaneamente estético e analítico, um espaço organizado em torno da cada vez maior fissura entre o mundo exterior e a interioridade psíquica própria do olho da mente. Um aspecto crucial desta mudança foi a emergência da arte e da ciência como actividades seculares – cada vez mais independentes da religião. O desvanecimento da qualidade sagrada da arte através do culto secular do belo também transformou o observador implícito no trabalho, desembaraçando-se do olho omnipresente de Deus e estabelecendo o da razão. Isto introduziu um problema estético diferente – o da referência entre os domínios divorciados da arte e da vida – e abriu o duelo entre a ‘mimesis’ e a ‘realidade’ que constituiu a matriz da estética até ao nosso século.

A câmara foi inventada e estabeleceu-se numa altura em que o positivismo dominava. Durante o momento histórico em que o positivismo subjugou virtualmente a totalidade do conhecimento ocidental, a câmara fotográfica conseguiu fundir o realismo da perspectiva geométrica e o investimento teológico na luz como a origem da verdade com a valorização científica do olho objectivo ( McQuire : 1998 : 21 - 33; Jenks : 1995 : 8).

O termo ‘invenção da mente’ encapsula a maneira como a demanda cartesiana da verdade e de novas fundações é colocada como o problema de relacionar o mundo externo com a interioridade de uma mente pura e livre de todos os vestígios de emoção, sensualidade e corporalidade. O que o texto cartesiano formaliza é o novo senso de clausura relativamente ao eu. Para Descartes é a natureza exterior e impessoal do mundo que permite ser conhecido objectivamente. É graças ao facto do mundo se ter distinguido da mente que pode ser submetido aos princípios da matemática e da geometria, que providenciarão a matriz dominante do conhecimento científico e da representação visual. As questões metafísicas acerca das características ‘reais’ da natureza ‘exterior’ e da mente ‘interior’ eram naturalizadas e o projecto da filosofia dedicou-se à descoberta ‘rigorosa’ e ‘científica’ do modo mais preciso e apropriado de transportar o ‘exterior’ para o ‘interior’. O meio por excelência deste transporte tem sido os sentidos, principalmente a visão. Estas teorias empíricas do conhecimento marcaram a época da modernidade : um período que podemos descrever como a ‘abertura da visão’. Este cenário histórico estabeleceu uma dicotomia na relação entre o ‘eu’ e a alteridade, dois momentos concebidos como ‘o receptáculo’ e ‘o espectáculo’. Este cenário forjou a emergência de um empirismo ‘sem-mente’ e de um positivismo ‘sem-valor’ como estratégias metodológicas que viriam a dominar a moderna teoria social (Jenks : 1995 :.3).

O cientista social aderiu ao ponto de vista clássico da ciência que se baseava em três princípios :

1. Uma visão mecanicista do universo como uma totalidade interrelacionada ;

2. Uma aceitação de que existia uma ordem intrínseca inerente aos fenómenos como formas externas ; e

3. A contingência necessária, sendo que a razão procedia através da ‘independência’ da visão de um observador (Jenks : 1995 : 4).

A doutrina do progresso técnico que visa atingir uma ‘cópia essencial’ propõe que, num extremo utópico, a imagem transcenderá as limitações impostas pela história e reproduzirá numa forma perfeita a realidade do mundo natural. A história é a condição da qual procura escapar. Contra esta utopia, a sociologia do conhecimento argumenta que tal evasão é impossível, já que a realidade experimentada pelos seres humanos é sempre historicamente produzida : não há uma ‘realidade’ transcendente e naturalmente conferida.

O positivismo, na sua variedade de formas, é uma atitude em relação ao conhecimento. Não investiga as dimensões psicológica, histórica e política do deste – todas essas preocupações são suplantadas pela ‘pura percepção’, que é o cânone fundamental do ‘empirismo’. O positivismo é legitimado pela ideologia da ‘pura percepção’. A fé pré-moderna na divindade foi substituída pela crença da modernidade na precisão da óptica humana. Este novo realismo distancia-se da textura das relações sociais quando, na sua demanda técnica e clínica de metodologia científica, abandona todos os juízos de valor. Existe uma visão que se vislumbra a si mesma como pura e que exibe a sua ‘amoralidade’ e a sua ‘anti-estética’ (Jenks : 1995 : 6 , 7). Neste universo, o homem tornou-se o centro relacional do que é (do que existe em si) : um domínio sobre um mundo natural através do qual todos os objectos podem ser comparados e relacionados uns com os outros como um único sistema homogéneo. A colocação do homem como centro de representação estabeleceu uma relação firme entre sujeito conhecedor e mundo conhecido, mantida no lugar através da distância estruturada da observação fria que permitiu que um dominasse o outro. Foi deste solo fértil e receptivo que a semente da câmara fotográfica brotou no século XIX.

A câmara obscura (precursora da câmara fotográfica) nos séculos XVII e XVIII era um aparato que garantia acesso a uma verdade objectiva do mundo, para cientistas e artistas, empiristas e racionalistas. Se parte do método de Descartes implicava necessariamente a evasão às contingências da mera visão humana, a câmara obscura era compatível com esta exigência : encontrar o conhecimento através de uma visão puramente objectiva. A abertura da câmara correspondia a um ponto matemático possível de definir e a partir do qual o mundo podia ser logicamente deduzido e re-presentado. Encontrada nas leis da natureza, i.e., na óptica geométrica, a câmara providenciou uma vantagem infalível : a evidência sensorial. A câmara obscura está ligada a uma metafísica da interioridade. É uma figura para o observador que é um indivíduo livre e soberano e, além disso, um sujeito isolado e enclausurado num espaço quase doméstico separado do mundo exterior público. Definia um observador sujeito a um conjunto de posições e divisões inflexíveis. O mundo visual podia ser apropriado por um sujeito autónomo mas apenas como uma consciência privada e unitária desconectada de qualquer relação activa com o exterior. A câmara obscura constituiu um impulso final no processo de normalização do novo arranjo espacial. É uma máquina desenhada de forma que, durante o seu ‘normal’ funcionamento, reproduza a perspectiva geométrica da pintura do quattrocento. Em primeiro lugar, ofereceu um sistema prático de fabrico de imagens de acordo com princípios matemáticos. Mas, mais do que tudo, a câmara obscura providenciou uma arquitectura social distinta, estabelecendo um modelo funcional de relações entre sujeito e objecto no qual a interioridade do sujeito observador podia ser mantida à parte da exterioridade do mundo-objecto. Esta divisão era baseada numa reorganização do conhecimento que culminava na emergência da ciência moderna (Crary : 1988 : 32 , 33 ; McQuire : 20 , 24).

A única força de evidência da fotografia dependia na crença que, pela primeira vez, a representação tinha alcançado paridade relativamente à percepção directa. A relação única entre objecto e imagem escavou os dois caminhos paralelos que a credibilidade da fotografia trilhou. Um é o senso de independência de qualquer operador humano que o processo fotográfico reclama. O outro trajecto tem a ver com a importância da intersecção da câmara com o privilégio que a luz e a visão têm gozado como metáforas da verdadeira compreensão. Visão cristalina, clareza, iluminação, têm se oposto às trevas da dúvida, cegueira e obscurantismo com uma consistência que é frequentemente conferida como se da própria natureza se tratasse. A sedução da fotografia nunca consistiu puramente na geometria ou na semelhança visual. A fotografia foi buscar muito da sua autoridade ao facto de trabalhar com energia solar.

A verdade foi sempre pensada de acordo com uma idealização de puro pensamento. Para se conformar à sua própria doutrina, a verdade tem que ser algo para além da representação, sem ligações ao estilo, forma, mediação, suporte técnico ou material de qualquer tipo. Para assumir valor absoluto e incondicional, a verdade só pode pertencer ao reino da ideia pura, o sentido ideal, o conceito não adulterado que flutua para além da linguagem, para além de qualquer contexto de tempo, espaço ou cultura. Segundo Derrida (1976 : 11 In McQuire : 1998), não é a linguagem em geral, mas sim a linguagem oral que tem beneficiado de uma aura de transparência, permitindo a pura expressão de pensamento de que a ideia de verdade depende. Este privilégio da fala, decisivo na ordenação de uma certa hierarquia de verdade e representação durante bastante tempo, ajuda a situar a aceitação da verdade fotográfica. Da perspectiva que casa a voz com o puro pensamento, qualquer forma de escrita é necessariamente derivante, uma representação de segunda ordem, o signo de um signo. No entanto, no seu início, a fotografia evitou bastante este estigma, e foi aclamada como visão sem mediação, um meio no qual o significante se apaga a si mesmo perante a força do significado. (Se esta avaliação era mais forte no século XIX, facto é que ainda se mantém no presente. Quando olhamos para as fotografias tendemos a invisibilizar o signo, dando atenção ao referente). O que estava envolvido na subordinação histórica da linguagem escrita à oral é menos a condenação total da escrita do que a declaração de uma preferência por uma forma de escrita em relação a outra. Mesmo sendo a escrita em geral ocultada, a escrita natural – aquela discutida por Sócrates que constitui a inscrição da verdade na alma, a escrita que pertence a Deus e que produziu a ideia do livro da natureza – foi celebrada e renovada. É uma espécie de escrita natural, processada pela própria mão de Deus, que a fotografia reclamou como a sua proximidade à verdade na representação. Desta forma, a câmara entrou na consciência do século XIX, não simplesmente como um novo meio de representação, mas como uma nova linguagem da verdade, numa altura em que as reivindicações naturais da linguagem como veículo da verdade eram elas próprias testadas.

O que é distintivo do século XIX é a emergência de uma objectividade concebida não apenas como a imitação verídica da natureza, mas em termos do ideal de deixar a natureza falar por si. Esta transformação epistemológica, que intensificou o desejo por um novo meio de representação capaz de igualar o observador humano no alcance directo da natureza, foi vital para a sedução da câmara fotográfica. A forma como o processo fotográfico prometia a substituição do operador humano graças às leis universais da óptica e da química foi instrumental na emergência da objectividade mecânica como finalidade da ciência do século XIX. Se o positivismo formou o ambiente social da primeira leitura das imagens fotográficas, a câmara fotográfica auxiliou a moldar o positivismo à sua própria imagem.

À medida que a subjectividade era cada vez mais identificada como um atributo perigoso e poluente, a procura de objectividade mecânica assumia o status de um problema moral. A máquina era valorizada não apenas por poupar trabalho mas por parecer ultrapassar as capacidades do falível observador humano. O positivismo é, com efeito, uma proposição relativamente à natureza do mundo material : a proposta consiste na asserção de que, se uma coisa é visível, é um facto, e os factos contêm a verdade singular. A rejeição da ambiguidade e o fortalecimento da fissão entre arte e ciência correspondeu à negação sistemática da importância da subjectividade na vida social. Em nome da razão muito foi ocultado sob o rótulo de superstição, folclore, misticismo, primitivismo ou loucura, ou estigmatizado frequentemente como irracional ou emotivo – muitas vezes simplesmente ‘feminino’ – e desqualificado do conhecimento legítimo. Simultaneamente, como parte do mesmo processo, o positivismo procurou crescentemente lidar com as diferenças subjectivas inscrevendo-as em novas formações de conhecimento, distribuindo a variação social pela curva sinusoidal estatística e dividindo todos os fenómenos entre os pólos do normal e do patológico (McQuire : 1998 : 30 - 35).

O efeito imediato e dominante da fotografia foi o de confirmar a autoridade do olho objectivo através da cedência de uma visão mecânica capaz de transcender a suspeição relativamente ao ‘mero humano’. A câmara tornou-se uma metáfora privilegiada para a divisão hierárquica entre subjectividade e objectividade que o positivismo procurou entronar sob o título de realidade. Neste respeito, a valorização da objectividade fotográfica moveu-se a par da recente preocupação com a percepção incorporada. A fotografia tornou-se o padrão em relação ao qual as variações do corpo mortal podiam ser medidas. A aceitação que as imagens da câmara representavam uma ‘verdade absoluta’ para além da percepção humana foi fundamental para a reorganização positivista do conhecimento. Para muitos, a câmara parecia o mecanismo ideal para levar a cabo o sonho de Comte : a colecção de dados científicos providenciaria eventualmente conhecimento acerca da natureza e sociedade de tal forma que as obras de ambas poderiam ser planeadas tendo em vista a edificação de uma utopia tecnológica na Terra. A interpretação fotográfica é ainda dominada por um positivismo que assume que a ambiguidade é contingente e redutível – através de uma aplicação paciente dos protocolos adequados – a um núcleo de certezas. O positivismo tentou , durante o curso da história, definir e regular os ‘desvios’ sociais através da fotografia distribuindo significados fotográficos em duas linhas metodológicas : a da generalização, que converte a contingência fotográfica num esquema típico fazendo da fotografia um ‘exemplo’; e a da individualização que depende de uma ‘máquina’ de recuperar o exemplo particular a partir dos infinitos limites do arquivo.

No fulcro da nova ordem burguesa (sec.XIX) estava uma revolução nas relações sociais do tempo, o despoletar de um motor lógico / ideológico cuja força dinâmica daria uma nova forma a todos os aspectos da existência humana. A fé na iluminação conferida pelo progresso, uma herança do Iluminismo, cruzou-se com a revolução industrial para alterar as fundações do equilíbrio da história : pela primeira vez, a transformação e não a inércia era o esperado. A consolidação política do capitalismo dependeu em grande medida nesta reavaliação do valor da transformação. A inovação – o mais recente, o mais moderno – sofreu uma metamorfose para ser reconhecida como valor absoluto em si mesmo. Tal transformação rompe com a tradição, não apenas dando uma nova forma ao aparato da produção, mas também à lógica do consumo, incluindo as formas dominantes de cultura e de conhecimento. O progresso substituiu a tradição como terreno ideológico da modernidade, dando origem a uma matriz comum de legitimação por entre os estados-nação que, doutra forma, seriam considerados cultural e politicamente diversos.

Parte da complexidade de representar a grande mudança trazida pela modernidade tem a ver com o que pode ser denominado de ‘era do progresso’. Ao mesmo tempo depende e produz transformações dramáticas na experiência e na compreensão do tempo. Enquanto a percepção do tempo como um destruidor é muito antiga (sendo um exemplo o mito de Chronos), as formas e ritmos de destruição alteraram-se significativamente no período moderno. Enquanto a figura medieval mais comum para representar o tempo era um círculo (quer se referisse ao ciclo agrário ou ao movimento dos planetas em torno das esferas celestiais), a cultura industrial substituiu esta imagem por a de uma linha. A partir deste momento, tornou-se cada vez mais difícil conceber o tempo como um ciclo no qual o nascimento e a morte são aspectos complementares em vez de opostos. O tempo passou a ser unidirecional (McQuire : 1998 : 112 ,113).

O modelo da linha e a teleologia da linearização saturaram o conceito moderno de progresso, condicionando a crença para o desenvolvimento infinito das capacidades produtivas e das qualidades intelectuais, o curso da história como algo cumulativo, a ordem do tempo como sucessiva e irreversível. A consolidação do progresso como lei sócio-política ( paralela ao princípio de selecção natural de Darwin na biologia e precedida na física pela concepção newtoniana do tempo absoluto e irreversível) corresponde a um período de transformação social acelerada.

A emergência da velocidade como valor social principal, associada a noções de produtividade, eficiência e lucro, permitiu a reorganização instrumental do tempo para formar um sistema aparentemente auto-regulador : enquanto a tecnologia aumenta a velocidade social, as pessoas vêm-se a exigir novas tecnologias para se manterem ‘a par’.

O local chave na transformação histórica do tempo – o estabelecimento do tempo numa linha – foi o espaço de trabalho industrial. A mudança do campo para a cidade, que se constituiu na tendência demográfica dominante dos últimos dois séculos, fez com que o tempo passasse a ser uma questão social e política de forma diferente. Primeiro, o trabalho era medido menos de acordo com a duração de tarefas específicas e mais em termos de quantas horas um indivíduo trabalhava, o montante de pagamento por hora, a duração do dia de trabalho, e por aí fora. Segundo, o trabalho era menos susceptível a variações climatéricas directas, mas, por outro lado, estava sujeito às estações abstractas do mercado. Terceiro, a reconstrução das práticas de trabalho operadas pela produção mecânica significou a perda de controlo, por parte dos trabalhadores, do seu ritmo de trabalho. A maquinaria nova exigia respostas precisas no tempo : ritmos de trabalho constantes, uma distribuição laboral constante. Os princípios de ‘gestão científica’ de Taylor e a linha de produção fordista eram extensões ‘lógicas’ da necessidade de coordenar o corpo humano com a ordem do tempo da máquina.

Construir o tempo como uma medida abstracta envolve a supressão das diferenças temporais específicas em favor da equivalência geral de todos os períodos de tempo : um achatamento do tempo que Heidegger caracterizou como a quinta essência da experiência moderna da temporalidade.

As esperanças e a incerteza deste período reflectiram uma nova consciência do tempo : o desejo de deixar o passado para trás para criar o presente competiu com a sensação que o tempo passava muito depressa.

O senso de disjunção foi aprofundado pelo facto da nova ordem política estar ainda no processo de se auto-inventar. A demanda de mitos de origem para consolidar a hegemonia dos fabricantes e dos industriais em relação ao proletariado deu-se em consonância com os primeiros surgimentos da ‘cultura industrial’. Jornais de grande tiragem, novas experiências desportivas, novas formas de entretenimento e de fazer compras (apareceram os primeiros grandes estabelecimentos comerciais), e novos rituais de celebração nacional reformularam o terreno social e político. Muito do que nós actualmente tomamos como a essência da tradição (como a pompa da monarquia inglesa , e.g.) teve origem neste tempo. As ‘tradições inventadas’ começaram a ter uma importância decisiva em assegurar as vidas individuais às exigências do estado.

A nova consciência do tempo teve como reflexo uma profunda transformação na forma como o passado era recordado. As memórias colectivas dependiam em muito das práticas quotidianas. Durante o século XIX, o afastamento em relação ao tempo cíclico próprio do campo, com os ritmos sociais acelerados da cidade, corroeu os mecanismos tradicionais da reprodução social.

A transformação mais importante foi o declínio da importância da tradição oral. Durante o processo de ‘remoção da narrativa do reino do discurso oral’, o passado veio a significar um novo senso de remoto. Em contraste com a tradição oral, a cultura industrial do século XIX deu origem a máquinas de memória e a teorias que investigavam a história (McQuire : 1998 , 114 – 121).

A ‘descoberta’ da história e a colocação da transformação sem fim como a lei natural da existência marcaram o momento de tradução do conhecimento na economia temporal da cultura industrial. Este período testemunhou a ascensão dos grandes museus públicos. Enquanto instituição incumbida de coleccionar, catalogar e exibir o passado para que este seja visível, o museu desempenhou um papel muito importante na ideologia do progresso. A legitimidade do progresso reside na crença que o presente constitui o auge da história. A satisfação do presente consigo mesmo depende em parte da criação constante do novo sob a forma de ‘avanços’ intelectuais e tecnológicos. Mas, o presente tem que ser configurado como a última etapa. A fé no progresso exige que o presente seja capaz de reunir o passado no seu seio. Condicionada pelo rápido desaparecimento do passado, a modernidade desenvolveu tecnologias de memória, como o museu, a câmara fotográfica e o computador, encarregados de levar a cabo a tarefa de assegurar uma representação permanente (McQuire : 1998 , 74).

Apesar das melhores (ou piores) intenções, o investimento no ‘fragmento histórico’ extraído e recolocado no museu tendeu sempre a guilhotinar o passado, produzindo uma temporalidade disjuntiva na qual os povos ‘primitivos’ eram excluídos do presente. ‘Museificar’ as culturas indígenas providencia um meio eficaz de as transferir simbólica e politicamente do reino da vida para o da morte : negando-se-lhe a contemporaneidade, eles são convertidos num banquete totémico cujo consumo engendrou um senso de poder vital para a identidade do ocidente moderno. Os grandes museus incubam o sonho da ingestão daquelas culturas ‘arcaicas’ que não têm capacidade para acompanhar o presente, e de as preservar para a eternidade nos centros metropolitanos : Londres, Paris, Berlim, Nova Iorque.

É no contexto de uma crise de memória que o entusiasmo imediato suscitado pela câmara fotográfica pode ser compreendido. A fotografia era vista, muitas vezes de forma consciente, como uma tecnologia capaz de preencher uma lacuna emergente. Com a sua velocidade, baixo custo, infinita reprodução e uma aura de neutralidade, a fotografia pareceu responder ao problema da ameaça ao passado. Por todo o mundo, antropólogos, etnógrafos e turistas ‘saíam’ para ‘documentar’ o passado ‘primitivo’ antes que desaparecesse. Como parte da revolução tecnológica, a fotografia foi utilizada extensivamente no esforço colonial para categorizar, definir, dominar e por vezes inventar um ‘outro’. A representação tornou-se numa forma de poder cultural e legal (Corbey : 1993 ; Scherer : 1992).

O que a câmara estabeleceu pela primeira vez foi um meio de produzir um arquivo à escala e ao ritmo das exigências do capitalismo. O capitalismo precisava da câmara como um meio de negociar a disjunção social produzida pela sua expansão convulsiva.

A diferenciação ocidental de outras culturas através de uma rede de hierarquias temporais foi acompanhada pela reavaliação do seu próprio passado como um símbolo de diferença : a diferença ao longo do tempo da cultura moderna relativamente a si mesma. Nos bancos de memória gerados pela proliferação das câmaras e pelo empilhamento de imagens, a era do progresso encontrou uma das suas principais medidas. Mas, tanto a câmara mapeou as transformações do ambiente físico e social, que ajudou a transformar os nossos conceitos de história e de memória (McQuire : 1998: 122 - 126).

A câmara não apenas oferece um novo nível de detalhe e uma nova forma de precisão, mas a reprodução mecânica multiplica em grande medida o número de documentos históricos que se pode produzir. Sob a pressão do escrutínio fotográfico, o passado permanece bastante visível, aberto à reinterpretação. Quando as ‘provas históricas’ se multiplicam exponencialmente, a linha do tempo já não tem coerência. Tanto o conceito do arquivo como o modelo da compreensão histórica com o qual foi associada ameaçam decompor-se.

Tal como outras formas de conhecimento herdadas do século XIX, a memória foi disputada entre os pólos da objectividade e da subjectividade. A memória objectiva exigiu a reprodução do passado tal como ele era, sem mediação ou alteração. De acordo com esta determinação, recordar consiste em preservar ou restaurar uma presença original – um evento, uma experiência ou encontro – que constitui um ponto de origem estável. A crença que o significado está totalmente presente neste ponto situa a importância conferida a um modo de representação ‘neutro’. A memória objectiva exige um símbolo ou um meio que consiga representar a origem, sem qualquer desvio.

O pensamento acerca dos imperativos da memória ‘boa’ e ‘má’ tem uma longa história, pelo menos desde que Platão sonhou com uma memória não contaminada pelos símbolos. Mas se o objectivo platónico da repetição perfeita permaneceu inalterável, os meios para atingir este fim sofreram uma profunda transformação. As mnemónicas clássicas enfatizavam o estabelecimento de imagens expressivas na mente de acordo com uma topografia familiar como os edifícios de uma rua ou os quartos de uma casa. À medida que uma pessoa se imaginava a deslocar-se através do espaço, as memórias armazenadas em locais diferentes podiam ir sendo recolhidas. No entanto, à medida que a ciência se tornou a matriz do conhecimento moderno, a personalização foi rigorosamente excluída, e a boa memória foi reformulada em termos da exterioridade da reprodução objectiva. Seguindo-se a Bacon e a Newton, a verdade científica veio a relacionar-se com a possibilidade de repetir resultados experimentais sob condições controladas. Esta mudança epistemológica ajudou a criar um novo terreno para a história e memória baseadas na repetição exacta. No século XIX, a reivindicação científica de penetração na realidade foi igualada pela da história relativamente à exibição apenas do que tinha realmente acontecido.

O que se torna cada vez mais evidente neste período são os caminhos paralelos ao longo dos quais as relações sociais de memória foram canalizados na modernidade. O importante tem sido a necessidade da memória de ser ‘sustentada’ de forma que o seu testemunho tenha autoridade. Tal como a ciência ‘dura’, a verdade histórica exigiu provas ‘duras’ e evidências repetitórias. Esta racionalidade instrumental condiciona uma grelha instrumental na qual tudo o que não é conservado é, implicitamente, desvalorizado, colocado sob o signo da experiência não substanciada e impedido de entrar nos altos domínios do conhecimento. Para além disso, na demanda de um passado ‘sustentado’ não servem quaisquer ‘suportes’. Os ditames da objectividade que fizeram com que fosse imperativo para a história demarcar-se dos discursos ‘especulativos’ como a filosofia, a teologia e a literatura, também orquestraram a preferência pela fotografia relativamente à pintura e a outros meios de representação. Em busca da objectividade, o ‘olho’ da câmara tem-se suplantado ao olho humano. De tal forma a ‘realidade’ é susceptível a ser definida pela câmara que tudo o que não é filmado, fotografado ou televisionado começa a adquirir uma qualidade etérea, como se quase não existisse, não provado, não consubstanciado, ilegítimo.

De forma clara, o potencial de sedução relativamente à imaginação científica reside na sua capacidade de objectificar a visão. Um aparelho mecânico capaz de registar as aparências mais transitórias e reproduzi-las infinitamente trouxe consigo uma promessa sem precedentes quanto à preservação da história sem mediação, memória sem texto. A câmara parecia oferecer um modo de representação neutral, o que era essencial à nova era da certeza histórica (McQuire : 139 - 167).

Logo que as primeiras imagens fotográficas começaram a circular, as vistas de terras distantes atingiram uma grande circulação nos centros metropolitanos europeus e norte americanos. Paralelamente ao retrato, eram as cenas exóticas e fora do comum que faziam disparar a imaginação do público. A fotografia passou a ser um importante instrumento do comércio da alteridade e alimentou novos discursos relativos ao ‘outro’ – da antropologia às narrativas populares de viagem e de vida colonial. A câmara foi instrumental na orquestração de uma visão colonial, tornando visível o que antes era ocultado ou desconhecido. Graças ao seu realismo magnético, as fotografias ofereceram propriedades únicas de possessão simbólica que se traduziram num meio ideal de coleccionar e catalogar o novo mundo Um dos objectos mais significativos que surgiram com a fotografia foi o postal : um símbolo barato e coleccionável dos horizontes da modernidade. A circulação dos postais cresceu exponencialmente no final do século XIX. A fotografia do postal tornou-se um espaço discursivo central na construção da identidade nacional, unindo as preocupações do antropólogo e as necessidades do administrador aos prazeres do viajante e à curiosidade dos que ficavam em casa. Com o seu repertório de imagens – onde o mito do nobre selvagem era contrabalançado por imagens de degeneração ‘nativa’, e a cidade estrangeira foi transformada num conjunto locais monumentais – o postal epitomizou o desejo ocidental de tornar as colónias visíveis e completamente legíveis. O postal exemplificou a maneira como a câmara concretizou os discursos do século XIX sobre a raça, permitindo que os corpos de outros fossem divididos em categorias visuais e inseridos em hierarquias evolucionistas. Um tema recorrente da etnografia deste período foi o estabelecimento de um catálogo fotográfico de todas as raças do mundo. A prática fotográfica estava ligada às teorias raciais assumidas pelo colonialismo. Separando o observador colonial dos ‘nativos’ observados, o acto de fotografar encaixava-se perfeitamente nos padrões do progresso tecnológico, objectividade científica e pureza da razão com os quais o ocidente procurou forjar o seu poder, enquanto as imagens científicas pareciam confirmar a diferença racial como um sinal visível de hierarquia cultural.

Tal como os novos veículos de transporte de pessoas e bens, a câmara transportou imagens e visões, mapeando a superfície da Terra e diminuindo a distância entre o estranho e o familiar de formas completamente novas. Fundiu o prazer de ver o que não era visto com o poder sob a forma de um conhecimento com aspirações normalizadoras. A câmara foi instrumental no avanço do imperialismo, unindo o olhar ‘duro’ da vigilância militar e burocrática com os prazeres panópticos ‘suaves’ do viajante voyeur. A fotografia, e mais tarde a cinematografia, não apenas facilitaram o exercício directo da força militar e do domínio colonial, mas também permitiram aos colonizadores acreditar que se apropriavam de territórios não familiares. Para o viajante no estrangeiro, a câmara muitas vezes funcionou literalmente como um ecrã para o olho, servindo para domesticar o estranho impondo um enquadramento padrão em cada encontro com a diferença racial e cultural. Para o visualizador no seu próprio país, as imagens de ‘outros’ tornaram-se objectos de consumo, e desempenharam um papel crucial em assegurar o perímetro da identidade ocidental numa altura de exposição crescente à diversidade racial e heterogeneidade cultural. Nesta fase, as fotografias que retractavam o passado esplendoroso de ruínas arcaicas misturavam-se com imagens da vida colonial contemporânea, alimentando a imaginação colonial. A ‘periferia’ era não apenas representada por ruínas, muitas vezes figurava como uma ruína, distante no tempo e, simultaneamente, aproximada no espaço. Esta tradução da diferença cultural em disjunção temporal por virtude da lei do progresso tem sido central na construção da política global moderna. A designação das raças não-europeias como relíquias, sobreviventes arcaicos cujo momento criativo pertenceu a um passado perdido, tem sido intrínseca ao senso do ocidente sobre o seu destino moderno. Mesmo quando os ‘primitivos’ eram comparados às crianças, eles tinham uma diferença : nunca cresciam. Estavam excluídos do presente. O seu único futuro possível era, por destino, a assimilação (McQuire : 1998 : 192 , 196).

As diversas práticas, instituições, conhecimentos e prazer gerados pela câmara fotográfica têm constituído uma parte integral do processo de modernização, ajudando a definir o alcance global do capitalismo e as ambições coloniais do ocidente, ao mesmo tempo que facilitou a reorganização instrumental da vida política e social do ‘lar’. A transformação das sociedades em entidades seculares, urbanas, industriais, que forjou os horizontes da modernidade, é inimaginável e seria impraticável na ausência fotográfica. A invenção da fotografia alargou imediatamente o número de pessoas para quem a representação individual era económica e ideologicamente acessível. Se o retrato fotográfico conferia o status de subjectividade, igualmente reforçava uma nova inscrição da identidade social. A fotografia transforma a prática da auto-identidade e amplia a duplicidade do termo ‘sujeito’, apontando, por um lado, em direcção à soberania do indivíduo e, por outro, para a possibilidade de se sujeitar à regra de um discurso normalizador. Se a popularização da fotografia marcou um alargamento do terreno social da representação, também formou o limiar histórico para além do qual a vigilância já não viria de um plano superior – quer o olho vigilante pertencesse a Deus, ao rei ou ao estado – , dispersando-se cada vez mais por entre a população. A vigilância institucionalizada constitui-se sob a forma de um indelével ponto de referência de tal forma que, frequentemente, é a ausência da câmara – ao invés da impossibilidade de lhe escapar – que se faz sentir actualmente. Aprendemos a importância e o prazer de nos vigiarmos a nós próprios. A alternância entre o narcisismo e o voyeurismo na formação do espectáculo moderno é, sem dúvida, condicionada pela maneira como ergueu resistência à crença no invisível. O que não pode ser visto, fotografado ou filmado assume muitas vezes uma existência ansiosa e flutuante.

Atravessando categorias de significação, as fotografias trespassam a fronteira entre o conhecimento ‘comum’ e o ‘científico’. Não necessitavam do conhecimento de um especialista para a sua interpretação. Como a compreensão da fotografia começava e acabava com o espectador, qualquer pessoa tinha capacidade para alcançar o significado de uma fotografia (Jenkins : 1993 ; Crary : 1995).Bourdieu sugeriu que a fotografia de família é simultaneamente um índice de unidade familiar e um instrumento de forjar essa mesma unidade : “a prática fotográfica apenas existe e subsiste a maior parte do tempo graças à sua função familiar de reforçar a integração do grupo familiar estabelecendo o sentido que esta tem de si própria e da sua unidade (Bourdieu : 1965 : p. 19)”. Mas, tal como simboliza a unidade, a fotografia de família também funciona como um sinal da dispersão. A câmara pertence à era das migrações em massa, na qual a experiência da separação foi generalizada, e a fotografia familiar assume toda a sua força apenas quando representa uma unidade familiar que passou por muitas transformações (McQuire : 1998 :60). A disseminação da diáspora fez com que o desenraizamento cultural fizesse parte da experiência da modernidade. Para aqueles que deixam o lar, a ruptura não é apenas espacial, mas sim temporal. No país anfitrião, o migrante é muitas vezes dividido entre a nostalgia do passado e o investimento na promessa do futuro. Se a câmara fotográfica abriu novos horizontes ao olhar do colonizador e do turista, também é verdade que outorgou aos diaspóricos um meio poderoso de ultrapassar a distância e a ausência, de unir os pólos que a vida separou. Tal como a fotografia assinala um locus de ausência irredutível, também é frequentemente o talismã que evoca a possibilidade de regresso (McQuire : 1998 : 5 ,7).

Se a cidade é o lar da modernidade, então a modernidade reinventa o lar. Reconhecer isto não é tentar isolar a cidade moderna dos seus espaços circundantes, mas sim reconhecer a dominação que sobre eles é exercida. A metrópole industrial vai subjugando cada vez mais ‘o campo’ à sua volta, extraindo-lhe as matérias-primas, a alimentação e as gentes. Dentro desses circuitos, a cidade moderna não apenas tem sido o destino físico de incontáveis vagas de migração; tem-se também constituído como um destino psíquico, um locus de capital simbólico e uma rampa em relação à projecção do poder imperial. A cidade tornou-se um grande laboratório perceptual. Novas experiências espaciais e temporais conduziram ao surgimento de necessidades de representação. Cada vez mais, o ambiente urbano procurou acompanhar a memória do ‘campo’, sob a forma de jardins botânicos, jardins zoológicos, parques públicos, etc. O ‘arranha-céus’ não apenas simbolizou uma ruptura radical com as estruturas do passado , mas transformou os hábitos perceptivos do presente. Olhando para baixo a partir de grandes altitudes, foi encontrada uma nova topografia : a paisagem urbana. A partir do solo, a verticalidade dos grandes edifícios desafiou o acto de ver. A paisagem urbana foi transformada por uma nova geração de veículos. Para além de providenciarem a infra-estrutura de novas relações económicas e sociais, os novos veículos revolucionaram a percepção. A visão encontrava-se cada vez mais vezes numa rota de colisão com o ambiente urbano, projectado numa série de encontros que transformaram a natureza da paisagem na brusquidão da chegada e na rapidez da partida. A electricidade alterou significativamente a aparência visual da cidade. A lâmpada incandescente converteu a escuridão nocturna das ruas em artérias de luz e as vitrines das lojas em mundos de fantasia, carregando o habitat urbano com as qualidades imateriais e espectaculares previamente reservadas a locais de exibição como o teatro, o diorama e os parques de diversão (McQuire : 1998 : 209 , 210).

Referências:

CLARKE , Graham , 1992 , “Introduction” In Portrait Photography , Reaktion Books , Washington.

CORBEY , Raymond , 1993 , “Ethnographic Showcases – 1870-1930” In Cultural Anthropology.

CRARY , Jonathan , 1988 , “Modernizing Vision” In Vision and Visuality , Bay Press , Seattle.

_____ , 1995 , Techniques of the Observer , MIT Press , Cambridge , Massachussets , London.

GREEN , Nicholas , 1990 , The Spectacle of Nature : Landscape and Bourgeois Culture in Nineteenth Century France , Manchester University Press , Manchester.

JENKS , Chris , 1995 , Visual Culture , Routledge , London & N.Y..

MCQUIRE , Scott, 1998 , Visions of Modernity , Sage , London , T.O. , N.D

1 comentário:

Gina Emanuela disse...

Muito bom o seu texto. Deu uma explicação interessante sobre o surgimento do processo fotográfico! Você tem algo sobre o "Novo realismo" na fotografia?