terça-feira, maio 30, 2006

Impermanência

Conta-se que no século passado, um turista americano foi à cidade do Cairo, no Egipto, com o objectivo de visitar um famoso sábio.O turista ficou surpreendido ao ver que o sábio morava num quartinho muito simples e cheio de livros.As únicas peças de mobília eram uma cama, uma mesa e um banco.
- "Onde estão os seus móveis?" - perguntou o turista.
E o sábio, rapidamente, perguntou também:
- "E onde estão os seus...?"
- "Os meus?!" - surpreendeu-se o turista.
- "Mas eu estou aqui só de passagem!"
- "Eu também..." – concluiu o sábio.

sexta-feira, maio 26, 2006

A Crise Nacional


É comummente aceite que Portugal está em crise. Fala-se, sobretudo, da crise económica, uma espécie de objectificação de um conjunto de problemas que afectam o estado português e que, para a maioria das pessoas, se traduz num único predicamento que as afecta diariamente: a falta de dinheiro. Gostaria aqui de distinguir dois tópicos:
- O primeiro é o conceito cultural de crise. A “crise” é um artefacto, ou seja, trata-se de um objecto criado por uma cultura, ainda que seja imaterial. Existe num nível ideológico. Tem propriedades que lhe são atribuídas e mantém relações com um grupo social. É um objecto “espectral” (perdoem-me esta expressão que parece saída do esoterismo), uma vez que parece emanar do próprio grupo que afecta, como se tratasse de um fluxo vivo cuja principal característica é prender-nos a todos a uma condição sombria. A crise é uma espécie de assombração que nós próprios geramos.
- “Crise” é uma palavra de origem grega (“krino”, peneirar). Neste segundo tópico, deve entender a expressão no seu sentido de questionamento, problematização. Criticar é levantar questões sobre um determinado assunto e, por vezes, por em causa um paradigma.
Em relação ao primeiro tópico, pode dizer-se que “a crise” está bastante enraizada no pensamento português, uma vez que a ela atribuímos muitos fenómenos e é aceite por uma vasta maioria como uma entidade real. Quanto ao segundo, não posso afirmar com tanta firmeza que o povo português seja “crítico”. É sobre esta segunda abordagem que se debruça o presente texto.
As coisas não correm bem no nosso país. É este o mote para um número incontável de conversas e desabafos. Os principais “ataques” são dirigidos, sobretudo, à classe política. Seguem-se as classes profissionais ligadas à saúde e à educação. São-lhes atribuídos os seguintes defeitos: má gestão dos serviços que oferecem, oportunismo, incapacidade para desempenhar as funções que exercem e, em casos extremos, a corrupção. Não é a minha intenção negar nem confirmar tais considerações na análise que aqui teço, mas sim demonstrar que a origem dos problemas que nos afectam a todos não está circunscrita a alguns sectores da sociedade portuguesa.
No meu entender, a raiz dos problemas nacionais é cultural. Importa aqui salientar que a noção de cultura empregue neste texto aponta para o universo de classificações que estruturam a experiência humana. Distancio-me, como tal, da noção de cultura entendida como “Belas Artes”ou outras actividades conotadas com as “elites intelectuais”. Cultura tem a ver com o problema do sentido, com a forma como cada grupo classifica e entende o seu próprio mundo. É uma “estrutura mental” (e simultaneamente corporal) que organiza todas as acções (das mais banais às mais criativas), conscientes ou não. É precisamente nesta dimensão que está a origem dos males que todos, aparentemente, conhecemos tão bem. O subdesenvolvimento está dentro de nós e o mau funcionamento das instituições resulta do prisma que usamos para ver a realidade.
O verdadeiro problema nacional está no nosso ser. Somos um grande grupo de aldeões, com horizontes tão estreitos quão limitadas são as nossas ambições. O nosso pensamento é cartesiano e hermético, separamos e mantemos a realidade em unidades fechadas. A interdisciplinaridade é um mito nas universidades, nas mais diversas instituições, e no pensamento do lusitano mais comum. O português tem uma extrema dificuldade em dar sentido a aspectos complexos e, sobretudo, multidimensionais. Quer cada coisa no seu lugar e a criatividade poética é remetida para a esfera do lúdico.
Somos extremamente catárticos e pouco críticos. Estamos especialmente interessados em “descarregar” os nossos sentimentos mais básicos (ódio, inveja, vingança,etc) sob a forma de escândalo grupal. Evitamos uma análise objectiva e serena que conduza a projectos pessoais de cidadania. Não acreditamos na democracia nem nas suas instituições. Os objectivos alcançam-se através da “manha” e das amizades que cada um tem. Temos medo que o sistema nos caia em cima. Por “sistema” entenda-se “o conjunto de pessoas às quais é reconhecida uma autoridade e que têm meios para exercer violência (‘tramar os outros’)”. Quanto mais abstracto for o “sistema” mais medo exerce sobre as massas. O português sobrevaloriza a autoridade, deseja-a para que possa abusar dela e teme-a quando sente que outro a tem. Toda a gente quer ser chefe ou presidente, por vias formais ou simplesmente pelo poder que o protagonismo oferece.
Em Portugal não gostamos da diferença mas toda a gente se considera tolerante. Somos simplesmente paternalistas em relação a grupos que já têm um estatuto. «Ninguém é racista»! No entanto, o repúdio por outras formas de opressão não faz parte da agenda politicamente correcta dos portugueses. Desde que a vítima seja branca o ataque é legítimo. A personalidade de cada um (maneira de ser), a ausência de sinais exteriores de poder (dinheiro, conhecimentos, cargos, etc) e a aparência são alguns dos veículos mais usados para oprimir. E a opressão é epidémica…
Eu penso que, na sua maioria, os portugueses sofrem de um tipo muito específico de complexo de inferioridade. A auto-estima da gente lusitana está dependente da dimensão da sua “aldeia”. Para se sentir bem com ele próprio, o portuga tem que coexistir num espaço restrito com os seus iguais. O seu amor-próprio é muito volátil em zonas abertas. Daí que seja tão invejoso. Ora, a inveja mais não é do que a sensação de que não se está à altura de outra pessoa. Nós invejamos quem nos faz sentir mais pequenos. A cobardia é outra expressão deste complexo de inferioridade. Atacando os mais vulneráveis o português compensa, temporariamente, a sensação de impotência que o domina no dia-a-dia.
Todos os problemas atribuídos à “crise” e à “bandalheira” nascem precisamente da condição do ser português. Portugal funciona como uma aldeia porque é povoado por aldeões.
Delinearei, seguidamente, três exemplos que ilustram o meu argumento:
- O subdesenvolvimento económico. No nosso país a iniciativa empresarial é um bem escasso. Quem tem capital para investir procura o conforto e satisfazer ambições pequeno-burguesas ligadas ao estatuto. Os nossos cidadãos mais endinheirados preferem “investir” num Ferrari que cause inveja aos vizinhos do que em projectos que visem aumentar a qualidade dos seus produtos e, com isso, tornar a sua empresa mais competitiva. Além disso, preferem que os seus lucros provenham de “manobras” feitas ao estado (fugas ao fisco, subsídios…) do que serem eles a criar riqueza.
- As elevadas taxas de sinistralidade nas auto-estradas portuguesas. A deficiente cultura de cidadania (e de civismo) faz com que o automobilista dê largas ao seu egoísmo, desrespeitando as normas do código da estrada, as normas do bom senso e, sobretudo, a consideração pelos outros. Quando a autoridade policial está presente tudo muda de figura.
- Os maus-tratos infligidos às crianças. Todos nós conhecemos, graças aos holofotes da imprensa, diversos casos de pedofilia e de infanticídio, imbuídos de crueldade e perversão. Infelizmente, este tipo de violência não é exclusivo do nosso país. Nem eu pretendo debruçar-me sobre esta classe de criminosos. O problema português quanto ao desrespeito pelos direitos das crianças é outro. Regra geral, as gentes lusas não têm a menor aptidão para se relacionarem com os jovens. Os atentados à dignidade física, moral e psicológica enquadram-se no conceito de “educação” da plebe portuguesa. Todos os dias, pediatras, pedopsiquiatras, professores e educadores lidam com o calvário de milhares de crianças provocado pela estupidez e incúria de um povo que nunca amadurece, que se limita a envelhecer. Educar à boa maneira portuguesa é reprimir os comportamentos criativos, é mostrar o sofrimento e forçar a que este seja aceite como inerente à própria vida, é empurrar para os professores a responsabilidade total de uma formação intelectual e cívica… Ser pai (ou mãe) é convencer uma criança de que o mundo tem os horizontes televisivos, é usar o stress acumulado ao longo do dia para dar um valentes berros, umas estaladas sonoras, e desta forma mostrar quem manda. É assim que se faz um português: ensina-se a ter medo de quem tem mais poder, espartilham-se os horizontes e reduz-se a pó a auto estima do ser em desenvolvimento. A violência psicológica exercida sobre as crianças portuguesas é tremenda. Daí que muitas tenham dificuldade em estruturar as emoções e o pensamento. O insucesso escolar disseminado é a expressão mais visível deste problema.
É na relação entre pais e filhos que se mantém o subdesenvolvimento português. É a violência sobre as crianças que impede o desenvolvimento de cidadãos autónomos, ambiciosos e criativos. Daí que um Portugal melhor não seja um cenário realista, pelo menos a curto prazo. É provável que os jovens violentados do presente mantenham o ciclo de repressão, tornando-se nos agressores do futuro.
Torna-se necessário, nesta fase do argumento, perguntar: qual é o método mais adequado para superar a “crise nacional”? Como é que se muda a maneira de pensar de um povo? A via mais simplista, característica das ditaduras, é através de uma política do espírito. Todos os regimes de autoridade do século XX procuraram moldar as mentalidades, forçando um sistema de valores que procurasse legitimar o poder estabelecido. A censura dos meios de comunicação (ou “filtragem de conteúdos”), os programas leccionados nas instituições escolares e a propaganda governamental foram alguns dos principais instrumentos. Apesar destes meios de controlo do pensamento colectivo terem-se mostrado eficazes na manutenção do regime, nunca conseguiram criar um novo homem. Do regime soviético ao Reich nazi, do fascismo italiano ao comunismo chinês, os governos nunca conseguiram que a maioria da população adquirisse os contornos da sua visão antropológica. Foram capazes, isso sim, de aproveitar as pulsões e sentimentos populares a seu favor.
Uma vez que operar uma política do espírito é uma solução inviável (e que levanta diversos problemas éticos), urge procurar outros trajectos. Uma hipótese que eu coloco, completamente aberta à discussão, tem a ver com a indução da transformação social. Ou seja, uma maneira de modificar o espírito é alterar as condições de vida. Não me refiro a aumentos salariais ou outras medidas que visem acrescentar conforto ao quotidiano dos portugueses. Estou antes a pensar em alterações na estrutura do quotidiano e numa percepção diferente da realidade. Para que abandonem “a perspectiva do aldeão” os portugueses têm que ser impregnados com um senso de impermanência no seu dia-a-dia e entrar em contacto frequente com a alteridade real. O que é que isto quer dizer? Trata-se de operar uma ruptura nas rotinas das pessoas, forçá-las a sair do universo banal em que elas repousam. Fazer com que a transformação do seu modo de vida produza ao longo tempo a consciência de que nada é eterno nem imutável (a impermanência). Quando o meio circundante muda frequentemente as coisas (objectos materiais, estatutos, instituições, etc) começam a perder o valor, a deixar de ser sagradas. A única permanência passa a ser a condição humana. A forma de encarar o Homem (ou seja, a noção de pessoa) pode e deve ser enriquecida com o contacto frequente com o ‘exótico’, com aquele que é diferente. Não me refiro às “diferenças comuns”. A negritude e a homossexualidade já são banais. Não servem para alargar horizontes nem mexem com a nossa visão do mundo. Este país precisa de gente “estranha”, de pessoas que estimulem a nossa curiosidade e nos façam reflectir sobre as nossas próprias características. É necessário que o universo se torne mais complexo na cabeça dos portugueses.
Uma forma de dinamizar culturalmente o país, e de mobilizar os seus cidadãos, é dar-lhe um sonho. Um dos problemas que nos afectam e que contribui fortemente para o marasmo colectivo é a carência de um identidade nacional forte, viva no imaginário e nas emoções das pessoas. A falência do nosso patriotismo foi concomitante à degradação do Estado Novo. Durante o regime de Salazar, a estrutura política e o patriotismo eram um só. O revivalismo histórico, a concepção do império ultramarino, os símbolos nacionais e a política de unidade nacional formavam o tecido identitário do povo português. Portanto, o Estado Novo confundia-se com a identidade nacional. A impopularidade do regime fez com que as massas deixassem também de acreditar no seu país. Portugal era diferente porque tinha uma história única, com 800 anos; era diferente porque estava presente em quatro continentes; tinha uma missão no mundo: espalhar a sua cultura e “evangelizar” os povos indígenas. Este imaginário português foi sendo desvalorizado à medida que o Estado Novo avançava no seu crepúsculo. Mais tarde, o golpe de estado de 1974 veio agudizar a já débil identidade nacional. Rompeu completamente com os órgãos do regime e com a sua cultura. Os valores nacionalistas (ou patrióticos) foram esvaziados no seu conteúdo político, uma vez que os símbolos nacionais adquiriram uma conotação negativa, passaram a estar associados ao “regime fascista” derrubado pela revolução dos cravos.
A revolução fez emergir novos ideais e valores, mas nenhum que desse aos portugueses uma nova imagem do seu país. De um Portugal voltado para o ultramar, a nova classe política, procurou aderir culturalmente à Europa. No entanto, a adesão à comunidade europeia nunca conseguiu colmatar o deficit identitário.
Uma identidade nacional começa por ser um sonho, ou seja, um projecto que povoa os ideais e que estrutura as aspirações de um povo. Uma nação que não tem um sonho colectivo vê-se quase forçada a observar constantemente o seu próprio umbigo. O povo português tem sido nas últimas décadas uma espécie de grupo de hebreus perdidos no deserto à espera que Moisés os salve. Como não têm sinais de Deus há muito tempo já duvidam que Ele exista; não sabem para onde vão e divertem-se a inventar ídolos que tanto têm de dourado como de efémero. Um governante que consiga pôr os portugueses a sonhar tem o país na mão, para o bem ou para o mal, seja qual for o sonho. Por isso, não devemos esperar que um qualquer político oportunista sonhe por nós. Se queremos um Portugal melhor temos todos que estimular a nossa capacidade onírica.

segunda-feira, maio 15, 2006

Breve Apreciação do Código Da Vinci

A primeira vez que eu ouvi falar no célebre livro de Dan Brown foi através de uma conhecida. O que me chamou a atenção foi a excitação e curiosidade que ela demonstrava sempre que falava na obra. Estava ansiosa que saísse a edição portuguesa. O título pareceu-me sugestivo e perguntei-lhe a razão de tal entusiasmo. «É um romance de mistério baseado em factos históricos sobre a vida de Cristo. Está a causar grande polémica. Parece que Cristo “andava” com Maria Madalena…».
Eu li na web algumas sinopses e fiquei mal impressionado. Por isso decidi que quando o livro chegasse a Portugal eu não o leria. Achei (e continuo a achar) que o senhor Dan Brown conseguiu produzir um texto altamente comercial destinado à curiosidade pornográfica das massas. Nos dias que correm há dois ingredientes que tornam uma narrativa mais apelativa do ponto de vista do grande público. O primeiro é a vida privada das figuras públicas e o segundo são as teorias de conspiração. Ora, o autor de O Código Da Vinci conseguiu reunir os dois ingredientes: a suposta vida privada de Jesus e uma enorme cabala dentro da igreja católica. O resultado foi um tremendo sucesso de vendas.
Rejeitei o livro por uma questão de higiene mental. Detesto teorias de conspiração e sinto nojo da “má pornografia” (a exploração comercial da vida privada das figuras públicas). Uma obra (escrita ou filmada) não é pornográfica por mostrar nudez ou ter um conteúdo sexual. A pornografia é um tipo de estética muito particular baseada na hipocrisia social. Trata de mostrar o que habitualmente está escondido (por "pudor”) com uma sensação de realismo. É uma espécie de peep-show onde o observador tem o poder absoluto, sobretudo para fazer juízos de valor. As “sopeiras” do nosso país são grandes pornógrafas, na medida em que são “mirones” da intimidade alheia com um medo crónico de uma possível inversão da perspectiva. O pornógrafo deleita-se espreitando os vícios dos outros e sente-se seguro por detrás da sua máscara de virtudes. Eu repudio este tipo de pornografia seja ela dirigida a uma suposta vida privada de Cristo ou à relação entre um jogador de futebol e uma apresentadora.
Para além das estratégias comerciais, o autor demonstrou pequenez de espírito ao colocar a falsa questão da vida familiar do Nazareno. Isto porque a vida de Cristo que nós conhecemos através do Novo Testamento e de alguns textos apócrifos tem valor como alegoria. Jesus, mais do que um homem, é uma mensagem. Não há acontecimentos banais porque todos os seus actos são sempre ensinamentos dirigidos a um projecto de humanidade. Ainda que Cristo tenha tido uma vida familiar com Maria Madalena, onde é que está a alegoria? E que lição podemos tirar do “facto” de Jesus ter sido pai?
O livro questiona a natureza divina de Cristo. Afirma que o Nazareno foi alguém muito importante, com grandes ensinamentos, mas terreno na sua condição. Este argumento é utilizado pelos judeus há cerca de dois mil anos. Foi precisamente esta questão que conduziu Jesus ao julgamento feito pelos fariseus e que teve como consequência a Paixão. Não sei se o facto da obra ter sido levada ao cinema por um realizador judeu (um activíssimo “defensor” de Israel da “causa judaica”, o senhor Steven Spielberg) é um produto do acaso. O que não me parece acaso nenhum é a grande quantidade de “documentários” e “documentos históricos” que tem surgido, nos últimos dez anos, procurando reduzir Cristo à condição de profeta.
Eu recordo-me da Paixão de Cristo (de Mel Gibson) quando estreou no cinema. As críticas, reivindicações e ameaças por parte da inteligentsia judaica pareciam nunca mais acabar. Uma vez que os sacerdotes judeus eram os “maus da fita”, o filme iria acicatar o anti-semitismo nas comunidades cristãs.
A realidade é que a identidade judaica é muito forte e beneficia de um paternalismo francamente exagerado. São os sobreviventes do holocausto, da inquisição, dos faraós do antigo Egipto, dos filisteus, e por aí fora… E isso dá-lhes autoridade moral para tudo. Para atentar contra a fé de muçulmanos, dominar palestinianos, controlar Hollywood, obter privilégios políticos, usar os serviços secretos (Mossad) para cometer assassinatos no mundo inteiro, torturar terroristas… e fazer uma campanha muito bem disfarçada contra as fundações da fé cristã.

domingo, maio 14, 2006

Hackers e a Política do Medo


Nas sociedades ocidentais contemporâneas, dominadas pelas tecnologias de informação, a expressão “hacker” é de uso corrente. Ela surge, na maioria das vezes, associada à ideia de crime e de perícia no âmbito das novas tecnologias. A imagem do hacker mais comum foi construída pela “fear factory” imbuída nos meios de comunicação de massas. Todos os dias somos bombardeados pela imprensa (televisiva, escrita e online) com notícias de atentados terroristas, epidemias, catástrofes naturais, crimes da mais diversa natureza, e um rol de cenários distópicos que provoca em nós um medo constante e inconsciente. É a este processo que eu chamo fear factory: um engenho cujo propósito é o de provocar o medo generalizado.
O temor (e por vezes o pânico) teve ao longo da história um papel determinante na estruturação das sociedades – ocidentais e não só. Como instrumento político serviu ora para manter o status quo, ora para provocar o ímpeto das massas em direcção a um objectivo pré-determinado. O medo foi, e continua a ser, um meio poderosíssimo de controlo comportamental.
Uma forma encontrada pelo capitalismo global para encontrar novos mercados, produzir consumidores e concentrar o poder económico em pequenos grupos foi a de gerar “guerras imaginárias”. Falo dos cenários de violência com que todos os dias somos confrontados através dos meios de comunicação. Com a expressão “imaginárias” não quero dizer que não se baseiem em fenómenos ‘reais’. No entanto, há que ter em conta que o jornalismo é um processo de selecção da realidade. Um jornalista, quando confrontado com uma enorme diversidade de situações, tem que decidir quais são “notícias”. Tem que extrair um acontecimento específico do emaranhado de situações caóticas que compõem a realidade, separar o que é relevante do que é banal. Para o conseguir, projecta-se na mente do público, indo à procura do que poderá suscitar interesse. O leitor tem memória, por exemplo, de algum acontecimento feliz passado na Palestina? Provavelmente, não. Isto porque a realidade palestiniana foi filtrada para que só tivéssemos acesso ao terror e infortúnio. Para além deste processo de escolha, os acontecimentos adquirem a forma da própria cultura jornalística quando são narrados. Ler uma notícia ou ver uma reportagem na televisão sobre os atentados do 11 de Setembro não é a mesma coisa que estar lá. Isto porque a notícia é uma narrativa que obedece a critérios por vezes semelhantes ao do texto literário. A notícia tem uma introdução, um desenvolvimento e uma conclusão. As pessoas envolvidas são-nos apresentadas como “personagens”. Pode-se sempre encontrar uma alegoria (uma “lição” ou um juízo moral) e preocupações evocativas (o jornalista pretende que o público “sinta”, partilhe das mesmas emoções que ele teve quando presenciou o fenómeno). Devo salientar que as notícias são narrativas particulares. Particulares porque, apesar de se tratarem de “histórias” contadas a um público que não presenciou os acontecimentos, elas são percepcionadas através de um prisma cultural muito específico: a noção de realismo. Nós acreditamos que uma notícia é a transmissão pura de uma realidade. Isto acontece porque ao longo da nossa estruturação cognitiva “aprendemos” a distinguir as narrativas apresentadas num telejornal das narrativas “ficcionais” (literatura, filmes, etc). Portanto, o reconhecimento da realidade, no que toca às narrativas, baseia-se no local onde esta é apresentada e no formato da apresentação (por exemplo, todos estamos habituados às imagens “aos solavancos” das reportagens e dos documentários; transmitem uma sensação de realidade em estado bruto).
Um dos problemas provocados pelo “carácter literário” das notícias é o facto deste dar origem a essências. Pode fazer com que uma dada pessoa, um grupo de pessoas ou um dado fenómeno se associem permanentemente a um atributo (ou conjunto de atributos). Um exemplo desta associação é a criação de estereótipos. Quando alguém fala em islamismo não nos vem logo à cabeça a ideia de terrorismo? A expressão “Casa Pia” não passou a ser sinónimo de pedofilia? Para criar um estereótipo, por vezes, basta que um acontecimento (real ou não) passe a ser notícia.
É aqui que entra a “fear factory”. Da mesma forma que alguns progenitores menos esclarecidos incutem nas suas crianças o medo do Papão, os meios de comunicação têm criado estereótipos cuja única função é a de assustar as massas. A Fábrica do Medo é o verdadeiro terrorismo, a política do terror. A forma como as pessoas se organizam socialmente e as relações de poder no seio de uma sociedade são estruturadas pelo medo provocado pelos estereótipos que as massas interiorizaram. O medo faz também com que os seres humanos reprimam as suas pulsões afectivas, restando ao indivíduo seguir apenas motivações relacionadas com a sede de poder por um lado, e, por outro, procurar colmatar a ausência de amor pela construção de um eu (ou self) centrado em si mesmo. A bulimia, o consumismo exagerado e a competição desenfreada são corolários patológicos de um eu faminto que procura captar tudo o que o rodeia. Uma personalidade self-centered é característica das crianças nos primeiros estágios de desenvolvimento. No entanto, esta estrutura pessoal mantém-se, na maioria dos casos, ao longo da vida dos indivíduos nas sociedades ocidentais. O sujeito individual não amadurece porque o medo não o deixa “abrir-se” aos outros. Como tal, limita-se a envelhecer, chegando ao final da vida com o mesmo temperamento adolescente dos 14 anos mas com muitas mais frustrações.
O hacker é um dos estereótipos que povoam a nossa consciência. É um conceito nascido da política do medo. Para a maioria das pessoas, hacker é alguém que conhece segredos da informática (uma espécie de alquimista das tecnologias de informação) e que os usa com fins maléficos. Invasões de computadores, destruição de páginas web, fraudes bancárias e criação de vírus são todos fenómenos associados na imaginação popular à palavra hacker. Um hacker é um tipo de génio do mal com imenso poder. É graças a este conceito que milhares de jovens (ou milhões) se sentem tentados a aderir aos grupos (ou subculturas) conotados com o fenómeno hacker. Em primeiro lugar, o simples facto de poderem vir a pertencer a uma comunidade que foge aos parâmetros das instituições hegemónicas já é motivo de atracção e fascínio. O jovem procura aderir a este tipo de grupos de forma a moldar a sua identidade pessoal. Pretendendo afirmar a sua identidade, o jovem procura um grupo onde possa sentir-se diferente da maioria. Ninguém quer ser mais uma ovelha no rebanho… Em segundo lugar, as pessoas querem ir ao encontro de conhecimentos que lhes confiram poder. A atracção que o poder exerce é intrínseca à natureza humana. Neste caso, tratamos da capacidade de transgressão, a expressão por excelência do poder, que confere ao sujeito individual uma sensação de liberdade (fuga aos constrangimentos impostos à maioria). O problema surge é quando essa atracção se torna totalitária, ou seja, quando “substitui” (ou procura substituir) outros interesses que requerem um amadurecimento da estrutura emocional do indivíduo (o estabelecimento e manutenção de relações sociais, por exemplo).
O conceito de hacker está longe de se esgotar nesta visão de “alquimista do ciberespaço” (ou génio do mal). A realidade é que existem inúmeras comunidades do ciberespaço onde a expressão adquiriu outros contornos.
Eu tenho reparado que muita gente associa o Linux ao fenómeno hacker. Esta analogia tem vários fundamentos e nenhum está relacionado com os crimes informáticos. Vejamos:
1 - Nas sociedades de linux, “hacker” quer simplesmente dizer “programador; alguém que colabora no desenvolvimento de software”. Estes “profissionais” reagem com veemência a que se chame “hackers” aos piratas. «Um hacker é um ‘especialista’ que tem como objectivos desenvolver as ciências computacionais para o bem de todos; quem se dedica à pirataria e às invasões deve ser chamado ‘cracker’».
2 - A maioria das distribuições de linux (para utilizadores) é gratuita. O desenvolvimento deste software não tem, na generalidade dos casos, objectivos comerciais. Existe aqui uma consciência política nem sempre explícita. O linux tem uma identidade própria construída em grande medida por oposição a uma outra: a da Microsoft. A empresa do Sr. Bill Gates é conotada com os valores e lógica do capitalismo. Neste quadro, o “software Windows” causa aversão a quem se quer distanciar destes valores. Neste jogo de juízos, o linux afirma-se através de uma identidade “comunitária”, não é propriedade de ninguém, é feito por todos e para todos. Diversos grupos arrastam (muitas vezes sem o saberem) valores do comunismo para a esfera das tecnologias de informação. A oposição entre Windows e Linux reflecte a dicotomia “propriedade privada” versus socialismo. Este dualismo está presente logo nas descrições relativas à produção dos códigos-fonte dos programas (programação). Na obra The Cathedral and the Bazaar, o autor (Eric Raymond), para citar um exemplo, expõe dois modelos: o modelo da catedral, no qual o código do software está restringido a um grupo exclusivo de programadores; e o modelo do bazar, segundo o qual o código é desenvolvido na Internet à vista de toda a gente. Neste contexto dualista, as identidades “hacker” e linux casam-se abençoadas pelos valores que se opõem às hegemonias e à propriedade privada.
3 - As distribuições de linux oferecem aos utilizadores e programadores uma liberdade que não está patente noutros sistemas operativos. Uma pessoa pode modificar programas, copiá-los, distribui-los, até pode “montar” o seu próprio sistema operativo instalando os componentes que pretende. Em linux o utilizador chega a ter a opção de transformar o próprio núcleo do sistema (kernel). A única coisa que não pode fazer é vender o software. Esta liberdade (de exercer a criatividade) conferida pelo linux é muito estimada pelos grupos hacker, que a converteram em ideologia. Os hackers querem ser produtores (ter a liberdade de criar).
Descrevi aqui dois grandes modelos conceptuais associados à expressão “hacker”. O mais comum (disseminado na cultura popular) é produto da política do medo patente nos meios de comunicação social. Os utilizadores sentem que existe uma ameaça e adoptam uma atitude defensiva, do tipo “estado de sítio” permanente. Esta postura evita que tomem posições críticas em relação à ordem estabelecida (a estrutura social e política que os enquadra) e, como tal, serve para perpetuar o status quo. Tem outro efeito, desta vez económico, que é o de manter a indústria de segurança informática (que produz antivírus, firewalls e toda a panóplia de mecanismos defensivos). O segundo modelo é mantido por algumas elites que adoptaram uma postura de “liberdade e criatividade” muito semelhante à que reina na arte contemporânea. Nesta situação, o “hacker” é um indivíduo que domina várias técnicas, procura a originalidade e a experimentação e não se vende aos interesses consumistas.
Não é de estranhar que cada um destes modelos tenha surgido em classes sociais diferentes. A repressão foi sempre exercida com maior influência nas classes populares através da cultura de massas. Por outro lado, as ideologias de resistência nasceram e foram mantidas, ao longo da história, no seio de elites intelectuais. Quem pode, resiste. Quem não pode, esconde-se.