segunda-feira, fevereiro 06, 2006

Arte e Polissemia

Por polissemia entendamos a qualidade que faz com que uma única forma possa ter diversos sentidos, consoante o contexto de utilização e a sua inserção em esquemas estilísticos (Yule : 1985).
O que faz com que a linguística (ou linguísticas, tendo em conta a diversidade de escolas) se debruce sobre o problema da dinâmica do sentido (ou significação) deve-se, por um lado, à rejeição de modelos antigos com uma perspectiva linear ou estrutural (cujo modelo de análise não dava importância ao contexto social nem à passagem do tempo [acrónicos quando o problema do tempo nem se punha, ou sincrónicos quando se pretendia “congelar” a linguagem dando origem a uma espécie de “fatia” do eixo temporal]), e, por outro, ao facto das ciências do comportamento terem vindo a adoptar um paradigma novo, cunhado de cognitivista, que penetrou nas diversas áreas do conhecimento humano.
A palavra “arte” (do latim ars, tendo como significado base a ideia de “técnica”) engloba, nos dias de hoje uma variedade de sentidos quase todos ligados à noção de perícia técnica. As diferentes conotações desta palavra são produto da transformação das diversas ideologias que procuraram dar conta do trabalho humano (por trabalho entenda-se : o investimento físico, mental e emocional dirigido à transformação do mundo).
Arte, durante a história ‘ocidental’ que antecede o período moderno, servia para classificar tanto a actividade dos artesãos (qualquer forma de trabalho manual que exigisse algum treino prévio) como o trabalho dos ‘mestres’ dirigido à produção exclusiva de obras com um objectivo essencialmente estético. Compreendamos que as noções de arte e artesanato não constituíam domínios distintos. A separação destas duas esferas surgiu posteriormente com o advento da modernidade.
Aquilo que Arthur Danto(1993) chama mundos da Arte (Art Worlds), ou seja o conjunto de agentes (produtores, gestores, comerciantes e públicos) que dão vida social aos objectos criados com fins estéticos, é produto de uma transformação histórica encaminhada para a constituição de um terreno de pura criatividade, uma arte livre (livre de pressões políticas, económicas e, sobretudo, conceptuais).
Uma vez que o objectivo deste texto é o de demonstrar a polissemia da palavra, eu irei desligar-me do conceito de arte como esfera autónoma (as “Belas Artes”) para me concentrar nos sentidos utilizados por quem não está inserido nos Mundos da Arte de que fala Danto. Esta opção prende-se com o facto dos intervenientes dos mundos da arte não concordarem com um sentido para a expressão “arte”, recusando muitas vezes utilizá-la. Hoje em dia não há “artista” que diga “o que é arte”. Como tal, dirijo a minha atenção para os significados que todos nós utilizamos no quotidiano.
Na expressão “Aquele sujeito tem muita arte!” ou “X é um grande artista!” podemos encontrar um novo sentido para a palavra em causa. Trata-se de arte entendida como astúcia, manha. Estamos perante um processo no qual uma lógica inerente à arte (o dom de dominar uma técnica) é transferido para um novo contexto, dando origem a um sentido particular. Este sentido deve parte da sua força à ironia com que a expressão é proferida, mas o recurso fundamental neste processo é a metáfora.
A metáfora tem a ver com o entendimento de uma entidade partindo da perspectiva de outra. Neste sentido, pode dizer-se que todo o conhecimento é metafórico. Trata-se de um instrumento ilustrativo que envolve a deslocação de um termo pertencente a um dado sistema de sentido em direcção a um novo sistema (do grego metaphorá, «transporte») (Tilley:1999:p.4). Tilley (1999 : p.7) expõe duas maneiras de abordar a metáfora. Segundo a teoria da inexpressividade, as metáforas conferem forma às ideias e descrições do mundo, algo impossível através de uma linguagem literal. As emoções e os sentidos que comunicamos aos outros, quando colocados explicitamente, banalizam-se. Por outro lado, a teoria da compressão sugere que a metáfora providencia comummente a mais simples forma de comunicação entre indivíduos que partilham uma estrutura cognitiva/cultural. A metáfora permite expor disposições complexas de ideias por meio de breves enunciados.
Uma das mais importantes funções da metáfora no processo de cognição é facilitar a produção de novos sentidos. É por via da metáfora que ligamos objectos, acontecimentos e acções aparentemente (i.e., ao nível da percepção sensorial) desconexas. Por exemplo, conceber os corpos humanos como contentores (de fluidos e substâncias, com orifícios – entradas e saídas) pode ser o ponto de partida para examinar relações simbólicas entre o corpo e outro tipo de contentores como vasos ou potes. Para um ponto de vista empirista/objectivista do mundo um corpo é um corpo e um vaso é um vaso. É a metáfora que fornece o meio de transpor a visão fragmentada. Surgem então elos no seio da diversidade cósmica.
As metáforas dão origem a inovações semânticas porque criam informação sobre o mundo. Desempenham o papel de estimular a mente para novos pensamentos porque nos levam a perceber semelhanças que anteriormente nos escapavam. Novas metáforas ajudam a romper com as percepções comuns e permitem compreender algo novo e inesperado. (Tilley:1999:p. 8, 15).
Quando se procura elogiar alguém pelo seu talento, habilidade ou jeito, a palavra arte surge como sinónimo (do grego, synónymos «que tem o mesmo nome»), ou seja, as palavras têm um significado idêntico ou muito aproximado. Para Yule (1985 : 118) sinónimos são duas ou mais formas com um significado intimamente relacionado e que podem substituir-se mutuamente sem que se altere o sentido da frase.
Por outro lado, quando se procura denegrir as capacidades de outrem, como na frase “Tens cá uma arte!”, estamos perante a ironia, figura de estilo que veicula um significado contrário daquele que deriva da interpretação literal do enunciado.
Como já referi, a palavra arte incorpora uma lógica que aponta para o domínio de uma determinada técnica. Se bem que, no seu significado base, se entende tal domínio tendo em vista a produção de objectos materiais, o sentido de “arte” aparece muitas vezes desligado da componente artesanal. Desligado desta quer dizer apenas destreza, aptidão... Sinónimos que, representando uma lógica (e já não uma actividade concreta) podem ser recombinados com outras actividades humanas, gerando novos sentidos.
A importância das figuras de estilo que recorrem à analogia é considerável. Strauss e Quinn (1997) distinguem analogia e metáfora de um ponto de vista cognitivo. Para estas autoras, o pensamento é inerentemente analógico, isto é, funciona por conexões de ideias ou lógicas. Para pensar uma dada ‘coisa’ comparamo-la com as propriedades de uma outra. Quando se trata de realidades mais complexas, normalmente sistemas, recorremos à comparação de lógicas (ou estéticas, complexos semânticos). A analogia, para Strauss e Quinn opera num nível interno, no que se refere aos processos mentais interiores do sujeito. E é isto que a distingue da metáfora, que é utilizada para comunicar, para evocar estruturas cognitivas ao nível do receptor. Uma vez que partilhamos as mesmas estruturas dentro do grupo a que pertencemos – o contexto cultural – as metáforas que produzimos apelam ao receptor a construção do sentido que pretendemos transmitir. O problema desta distinção é que olvida outros recursos importantes na comunicação, como a metonímia. A metonímia (do grego metonymía, «mudança de nome», pelo latim metonymîa,») opera pela alteração do sentido natural dos termos, pelo emprego da causa em vez do efeito, do todo pela parte, do continente pelo conteúdo, ou vice-versa.
O que me parece importante clarificar são noções como : polissemia – a qualidade dinâmica que as palavras apresentam que lhes permite, mantendo a mesma forma apresentar diversos significados; metáfora - tropo em que a significação natural de uma palavra se transporta para outra em virtude da relação de semelhança que se subentende; sinonímia – a qualidade que diferentes formas apresentam de possuir o mesmo sentido; e a metonímia – recurso de estilo que altera o sentido natural dos termos, substituindo o todo pela parte, a causa em vez do efeito, etc.
Referências:
DANTO, Arthur, 1993 (Abril), “Art after the End of Art” In Artforum International, nº8, Los Angeles.
STRAUSS, Claudia & QUINN, Naomi, 1997, A Cognitive Theory of Cultural Meaning, Cambridge University Press, Cambridge.
TYLLEY, Christopher, 1999, Metaphor and Material Culture, Blackwell, Oxford.
YULE, George, 1985, The Study of Language, Cambridge University Press, Cambridge.

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