quarta-feira, junho 26, 2013

Um homem feliz

Enquanto trabalhava no norte de Portugal, conheci um carteiro aposentado, proprietário de uma pequena quinta, que cultivava com as suas próprias mãos. Tinha uma expressão facial afável, desgastada pelo tempo e pelo trabalho duro sob a agrura do frio húmido que se faz sentir na região. Esboçava um sorriso tímido, de vez em quanto. Não era homem de grandes espalhafatos nem de expressões abertas. Era geralmente reservado, excepto quando já tinha ganho alguma confiança com a pessoa recém-chegada. E então gostava de falar da sua terra, aquela mesma que habitava desde o nascimento, dos seus antepassados de origem humilde e dos hábitos quotidianos. Quem apenas o ouvisse, sem estar atento aos seus actos, ficaria convencido que aquele homem não se regia por moral alguma. Nunca o ouvi falar do bem e do mal, nem de expressões julgadoras ou do dever de quem quer que seja. Era preciso estar mesmo atento ao dia-a-dia daquele Ser para o entender. Levantava-se de manhãzinha (com um frio gélido) para ir sozinho a Igreja mais próxima praticar as suas orações, confessar-se a Deus e reafirmar a sua lealdade perante o Todo-Poderoso. Depois, voltava à quinta ou, se alguém necessitasse da sua ajuda (ainda que fosse um estranho), dedicava toda a manhã ao trabalho. Não era um homem fisicamente robusto, mas vi-o muitas vezes empregar todas as suas forças para ajudar a carregar fardos pesados. Cultivava a terra com as suas próprias mãos, ou seja, sem a ajuda de aparelhos agrícolas sofisticados que hoje em dia permitem executar tarefas num piscar de olhos. A verdade é que ele gostava de mexer na terra. Mexia nos torrões como se fizessem parte do seu corpo, com o mesmo amor com que um pai acaricia os pés do filho.
A caça e a apicultura faziam também parte dos seus afazeres. Partilhava sempre com os amigos o produto destas actividades. Ainda hoje me recordo do sabor do mel e das lebres que ele me ofereceu.
Nunca o vi fazer mal a quem quer que seja, mas assisti ao perdão espontâneo que lhe saía naturalmente dos olhos quando alguém o prejudicava.
Era praticamente analfabeto, mas sabia tudo o que precisava saber. Sabia quem era e onde estava, sabedoria essa que nem todos partilhamos. Não tinha opiniões nem causas políticas, mas tinha raízes. Nunca conheci outro ser humano tão coerente.
Quando me lembro de certos senhores cheios de conhecimentos livrescos, de vaidade intelectual, de insuficiências e frustações que tentam mascarar com um “estatuto”, vêm-me à ideia aquele homem telúrico, mil vezes mais Feliz do que o mais granjeado intelectual.
Há mais verdade num homem que cultiva a terra com as suas próprias mãos do que no mais erudito discurso patriótico. Quem se orgulha dos livros que leu, baixe os olhos e reflicta se não teria mais valor uma tendinite adquirida a ajudar o próximo.

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